Mindscapes: Fernando Velázquez

4 Agosto - 1 Setembro 2012

Paisagens metafísicas: a arte como forma de pensamento

 

Mindscapes (2011-2012 ), série de trabalhos do artista transdisciplinar Fernando Velázquez, é um convite para devaneios e reflexões. O título da obra evoca, claramente, a ideia de paisagens mentais e, em diálogo com o pensamento de Oliver Sacks, Velázquez nos leva a “ver com o cérebro”. Nesse processo de descobertas, nos percebemos em voos imaginativos, em plena atividade de geração de imagens. Mas, podemos nos perguntar: que imagens são essas? O que constitui uma imagem na era das visualizações de dados?

 

O universo de signos operacionalizado por Velázquez entretece fios da ciência, da tecnologia e da arte. Do campo da ciência, Velázquez associa, em sua gênese criativa, questões contemporâneas que indagam a respeito do impacto das tecnologias computacionais na emergência de visualizações de dados complexos e dos agenciamentos maquínicos que envolvem transformações na percepção, memória e experiência. Mindscapes extrai de pesquisas com neuroimagens reflexões sobre a consciência, imaginação e os processos de criação de imagens mentais. Nesse sentido, podemos perceber no projeto reverberações de estudos a respeito da imagem conduzidos por António Damásio. Para ele, as imagens mentais são definidas como padrões cuja estrutura é criada a partir de sinais provenientes das diferentes modalidades sensoriais como a visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva (Damásio, 2000, p.402)[i]. Além disso, o cientista considera a imagem para além de seu significado óptico ou visual e propõe que pensemos em imagem sonora, imagem tátil, imagem de bem-estar, etc. No desenvolvimento de suas ideias, Damásio concebe os padrões neurais (mapas) como alicerces da produção de imagens na percepção (2000, p.208); a imagem é compreendida como um padrão mental que se apresenta em qualquer modalidade sensorial e a consciência é resultado de um fluxo contínuo de imagens.

 

Como artista, Velázquez busca criar uma paisagem da mente. Mas, sua intenção não é representar diagramaticamente o sistema científico. Em ressonância com o desejo de “querer tornar visível o invisível”, de Paul Klee, Mindscapes é um projeto de desvelamento das estruturas ocultas, de rastreamento das pulsões.

 

A gramática de signos visuais de Fernando Velázquez se evidencia através de procedimentos de edição que intercalam repetições e diferenças, em busca de ritmos inusitados e configurações dinâmicas. Aqui também podemos nos remeter a Klee, quando estabelece os elementos formais da arte gráfica (pontos, energias lineares, energias planas e energias espaciais).

 

Velázquez constrói um tipo de experiência estética que torna visível esse complexo modelo de imagens da mente consciente em procedimentos que ressoam às questões da arte generativa. Embora o termo pulule com frequência no cotidiano da crítica, arte generativa pode querer indicar diferentes concepções. No trabalho Mindscapes os processos da arte generativa envolvem práticas e reflexões que utilizam as linguagens de programação como ferramenta artística. Para entendermos a dimensão antropológica da arte generativa é preciso que repensemos os modos de operação do artista (LEÃO, 2011). Fernando realiza projetos com profundo enraizamento na experimentação com dispositivos tecnológicos. Nesse horizonte, é importante considerar que a tecnologia como “a expressão tangível do desejo motivando a imaginação humana de modificar a realidade" (Pepperell e Punt 2000, p.7).

 

No cenário da produção com mídias tecnológicas, podemos falar da emergência de um tipo especial de artista: o experimentador estético. Para Mario Costa, é singular a função do artista que produz no âmbito dos dispositivos de síntese à medida que: “cria tornando operativos e materializando alguns paradigmas conceituais...” (1995, p.64). No diálogo com os sistemas, Velázquez realiza experimentações que desvelam a complexidade inerente aos dispositivos. Nesse sentido, Velázquez é um artista que pensa os dispositivos como elementos atuantes, isto é, agentes no processo de criação. Na rede de atores que o artista congrega, a tecnologia pode ser vista em seu potencial criativo, como máquina agenciadora de imagens em devir. 

 

As poéticas de Velázquez se desdobram em uma diversidade de mídias. Não por acaso, a série combina plataformas diversas como imagens impressas (metacrilatos), vídeos, instalações interativas e performances audiovisuais. Gaston Bachelard, em A poética do devaneio: esclarece: “Nunca a poesia é mais una do que quando ela se diversifica”. No mesmo sentido, Mindscapes enquanto série é uma proposta que, em suas redes de relações, revela uma unidade. Velázquez é um andarilho que não hesita em percorrer territórios díspares. Desde sua formação em artes plásticas, Velázquez vem constituindo um rico repertório icônico que lhe permite caminhar com desenvoltura nos processos da combinatória e da geração de imagens em tempo real. Diferentemente de muitos experimentos com imagens generativas, Mindscapes deixa transparecer um profundo conhecimento da linguagem visual que, embora não afeito a regras rígidas de sintaxe, lhe possibilita brincar com diferentes padrões. Por essa condição, Velázquez aproxima o dispositivo da performance ao pictórico. Em suas viagens pelas tecnologias digitais, Velázquez se permite mergulhar nas imbricadas redes dos códigos e realiza experimentações que exigem procedimentos de acoplagens de equipamentos, escrituras de códigos e enigmas lógicos. Nesse sentido, o espaço da instalação interativa é pensado e problematizado em seus aspectos físicos, estruturais e também enquanto sistema inteligente, sensível. Para Mindscapes, o artista avança em sua investigação e combina elementos clássicos das instalações interativas (como sensores e aparelhos de projeção) com um pensamento que revisita o conceito de tradução e apresenta cristalizações de tempo em imagens. Vivenciadas no tempo, as evanescentes imagens da instalação migram para suportes fixos, os metacrilatos e se configuram como enigmas. Para desvenda-los, não basta uma análise da imagem bidimensional. A imagem cristal, na leitura de Deleuze, tem duas faces: o atual e o virtual. É, portanto, uma imagem em circuito. Esse tipo de imagem cristal exige processos de deslocamentos e torções. Somente ao reunir os movimentos, os tempos e as ações da imagem nas diversas plataformas é que suas camadas se desembaraçam e se tornam visíveis. 

 

Vivemos em mundo cada vez mais povoado por tecnologias de informação e comunicação. Nesse contexto, projetos artísticos como Mindscapes nos instigam a pensar de que maneira os aparatos tecnológicos operam como “dispositivos”, instituindo discursos, tecendo visões e cartografando saberes e arquitetando relações de poder. No pensamento de Foucault, dispositivo é um conceito central e evoca elementos diversos como máquinas, tecnologias, programas, leis, instituições, enunciados científicos, decisões regulamentares, medidas administrativas, etc. Mas, como afirma Deleuze, os dispositivos não são sistemas homogêneos e, juntamente com suas linhas de sedimentação e estratificação, também comportam linhas de aberturas, fendas que se entrecruzam. Em vários sentidos, ao capturarem nossa memória, os acoplamentos maquínicos de Velázquez desenham percursos de desestabilização por entre esses abismos e nos conduzem a questionar as complexas relações que atuam em nossos sistemas perceptivos. Nas relações explicitadas por Mindscapes, o caráter híbrido, construído e mediado de toda percepção se desnuda. 

 

As ressonâncias estéticas da obra de Fernando Velázquez ecoam em projetos de neuroimagens que povoam o imaginário midiático. No entanto, enquanto as coleções de imagens escaneadas do cérebro reforçam lógicas causais estabelecidas entre forma e função (ver, por exemplo, Kosslyn, 2006), Velázquez incursiona por cenários oníricos. Nessas paisagens, as conexões evocam temporalidades iluminadas por movimentos e ritmos de uma rede iconográfica em mutação. 

 

Lucia Leão, 2012

 

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

COSTA, Mario. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1994.

DAMASIO, António R. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

DELEUZE, Gilles. “O que é o dispositivo?”. O Mistério de Ariana. Lisboa: Passagens,

1996.

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos, v. 3. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Manoel Barros da Motta (Org.). Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

KLEE, Paul. Sobre a Arte Moderna e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

KOSSLYN, S. M.  Mental image. In C. A. Jones (Ed.), Sensorium: Embodied experience, technology, and contemporary art. Cambridge, MA: MIT Press, 2006.

LEÃO, Lucia. “Paradigmas dos processos de criação em mídias digitais: uma cartografia”. V!RUS Revista do Grupo Nomads, USP, v. 6, p. 05-27, 2011. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus06/?sec=3&item=1&lang=pt>. Acesso em: 15/02/2012.

PEPPERELL, Robert e Michael Punt. The Postdigital Membrane: Imagination, Technology and Desire. London: Intelect Books, 2000.

SACKS, Oliver. O olhar da mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 
[i] . Na modalidade sômato-sensitiva estão presentes diversas formas de percepção como dor, tato, temperatura, etc.