Trailer: Katia Maciel

10 Abril - 12 Maio 2018

Não fosse a palavra

 

Em 2001, a artista visual, poeta e acadêmica Katia Maciel roda o documentário Neoconcretos. Trata-se de um apanhado de depoimentos de artistas plásticos que foram atuantes no âmbito daquela dissidência, e um dos fios-condutores discursivos mais evidentes nas falas é justamente a oposição à ortodoxia formal, ao geometrismo implacável, à matemática pura proposta pelo “estado-maior” do Concretismo. 

 

A primeira entrevistada, Lygia Pape, fala-nos em fluxo, o que imediatamente nos sugere trânsitos desimpedidos e orgânicos. Uma menção passageira a Heráclito e retoma-se o problema do indivíduo-artista como figuração privilegiada de impermanência, liberdade, não-fixidez. No limite, somos instados a pensar quem é quem nesta metáfora. O rio imparável, passagem e acúmulo, corpo que não se detém na definitude, que não é detido pela definitude, que se organiza apenas circunstancialmente e por isso mesmo materializa a um só tempo o provisório e o elemental – é o artista? Ou será a própria prática artística, tomada de forma mais esquemática? 

 

Corre o rio, vemos o poeta e artista visual Osmar Dillon. KM o enquadra diante de um trabalho de autoria do próprio chamado Chuva. Portanto, o fundo que nos “avança” a figura de Dillon é composto por uma série de “ripas de cristal” espelhadas nas quais o artista estampou as letras C H U V A. 

 

Ao falar sobre este trabalho, Dillon faz dois comentários extremamente oportunos, que retomamos aqui. O primeiro é a afirmação de que a palavra-chuva “ativa” o objeto. O segundo é a afirmação de que o objeto “seria frio se não fosse a palavra”. Com estes dois apartes, está posto o problema do objeto poético, de uma poética visual. A palavra é encarada aqui como um instrumento vitalizador – ao “acionar” um objeto ela o transforma em seu oposto, “não-objeto”, poesia; esta ausência de função unívoca o deposita no mundo dos vivos, terra fremente de sugestão e possibilidade. Vivificação por meio da palavra; o objeto torna-se cálido, receptivo, sem abandonar certo rigor de apresentação. O discurso de Dillon nos parece exemplar precisamente por aliar meticulosidade e apuro formal a um desejo de comunicação e intercâmbio de sentidos poéticos – entre os depoentes, Dillon não se acha só ao discorrer sobre a “participação” do fruidor como sendo capital para a existência da obra de arte. 

 

 

Mas pensamos ainda em rios. A imaginação do que se move, do que acumula dados vitais, do que respira, do que se reorganiza diante de nossos olhos permanecendo de algum modo fiel a si próprio. Tudo isto sempre esteve presente no trabalho artístico de KM. Agora, decorridos vinte anos desde o início de suas atividades, tomamos uma fotografia do fluxo, buscamos intuir para onde se encaminha. 

 

Nesta curva do trabalho de KM, começamos a ver uma retomada em objeto de motivos que antes se desdobravam mormente no âmbito do cinema e da videoinstalação. Sempre preocupada em desestabilizar tanto a imagem quanto as situações convencionais de espectação, KM – para usar as palavras de A. Berne-Joffroy em artigo de 1955 sobre os objetos de Fautrier – é uma artista que tem “a sensação exata de que as coisas poderiam ser diferentes” e que nos provoca continuamente com vislumbres de movimento, de uma vida escondida na estase, acossada no imóvel, à espera do menor sinal, da menor intervenção, para começar, para proliferar. Aqui, esta vida encontra um outro esconderijo, outra ocultação para pôr-se à espreita. A forma reformula, rejuvenesce. Vemo-nos agora no caminho do objeto; no caminho do objeto espelhado; no caminho do objeto ativado por palavras. O que pode significar, neste momento, uma opção pelo poema visual em detrimento, por exemplo, de uma permanência inquestionada no transcinematográfico? Coisa que nos fala fluvialmente – trata-se de uma água que encontra seus caminhos, que forceja, que não apenas assunta a vitalidade como dá mostras incontestes da mesma ao assumir frontalmente suas próprias transmutações. Neste caso, a opção pelo objeto já é, de si, substância de pensamento, podendo bem significar uma deriva para o sólido, para o cada vez mais tátil, para o cada vez mais claro e abarcável. O que, afinal, acontece nesta transformação da projeção móvel em quadro fixo, do filme em objeto, em poema visual? Houve crescimento ou redução do potencial interativo? Num caudal que perpassa o cinema, a arte instalativa, a poesia e a fotografia, o que significa este novo tributário? 

 

Repropor, mas é a primeira vez. Repetir, mas inaugurar. Recuar, mas avançar. Habitemos isto: a dificuldade de encontrar uma linguagem do retorno e do avanço, do rio e da matéria que corre com ele. Nos objetos que compõem esta exposição encontraremos reformulações e revisões de trabalhos já célebres da artista. São como precipitações, cristalizações novas. KM coloca-se para fora de seu próprio trabalho por alguns instantes para tornar-se executante de si. Há uma espécie de partitura, sim, mas ela foi escrita para abrir-se a este tipo de reinterpretação. Ela foi composta para a abertura. Ei-la. Utilizando-se da liberdade com que sempre tratou de seu trabalho (não apenas a liberdade de ver, mas também, e principalmente, a aterradora liberdade do que é visto), KM o reforma, ensejando assim novas e imprevistas relações no contexto de um repertório temático absolutamente coerente (o que é a água nesta metáfora?). Após anos dedicados a demonstrar – com calma característica – a instabilidade fundamental das imagens à nossa volta, KM, ela própria arquiteta de imagens, propõe-se agora desestabilizar seu próprio trabalho, friccionando-o contra um campo até então inexplorado.

 

Ismar Tirelli Neto