
Camille Kachani nasceu em 1963 no Líbano sem documentos, sem pátria, sem o direito de ser reconhecido como libanês. Filho de refugiados, chegou ainda criança ao Brasil, um país de identidades miscigenadas e raízes encobertas. Talvez tenha sido justamente a partir desse “não-lugar” de origem e dessa condição permanente de estrangeiro que o artista tenha desenvolvido sua sensibilidade para as histórias que permanecem à margem.
Na exposição “Uma Contra-História do Brasil”, Kachani revisita criticamente a elaboração do que se convencionou chamar de “história oficial” do país, apresentando doze obras inéditas. Nota-se nesses trabalhos mais recentes uma pequena mudança em sua pesquisa. Se em séries anteriores ele explorava a relação entre natureza e cultura por meio da elaboração de esculturas metamórficas (que combinam elementos naturais como galhos, folhas e flores com objetos que simbolizam a cultura poética e banal, como livros, instrumentos musicais, utensílios domésticos), agora ele aprofunda essa investigação em direção às camadas antropológicas e históricas do Brasil. Apesar de se debruçar sobre essas pesquisas históricas há mais de trinta anos, Kachani não abre mão da atmosfera lúdica de fantasia que sempre circundou sua produção. “Não é um trabalho antropológico, apesar de se basear bastante nisso”, afirma. Sua arte, segundo ele, “é política, mas não ativista. É sobretudo poética”.
Entenda, a seguir, os conceitos de três termos que nomeiam algumas de suas obras exibidas na mostra que estará em cartaz na Zipper Galeria entre os dias 16 de outubro a 20 de dezembro de 2025.
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“Contra-História”
O título da exposição faz referência a “Contra-História da Filosofia” de Michel Onfray, amplo projeto intelectual iniciado em 2002, quando o filósofo francês começou a ministrar cursos públicos na Université Populaire de Caen, fundada por ele. Mais tarde, esses cursos foram reunidos e publicados em uma série de livros.
Onfray questiona a narrativa da filosofia ocidental, que costuma privilegiar uma “linha oficial” de pensadores, sobretudo idealistas, espiritualistas e religiosos (Platão, Santo Agostinho, Descartes, Kant, Hegel, entre outros). Ele chama isso de uma “história oficial da filosofia”, dominada pela tradição platônico-cristã, que teria imposto uma visão ascética, repressiva e, por vezes, autoritária sobre o pensamento. Em oposição, a Contra-História busca recuperar filósofos marginalizados ao longo dos séculos: materialistas, hedonistas, libertinos, anarquistas, ateus, céticos e epicuristas. A obra foi publicada em vários volumes (mais de uma dezena), cada um centrado em um recorte, dos pré-socráticos aos libertinos do século XVIII, até chegar a Nietzsche e aos pensadores contemporâneos.
O termo também aparece no nome da obra homônima à exposição, “Contra-História do Brasil” (2024). Kachani, que começou sua carreira artística como pintor, depois de criar uma linguagem escultórica bastante reconhecível, volta a trabalhar sobre uma base bidimensional em trabalhos como este. Agora, porém, sua linguagem já foi contaminada e se apresenta de forma bastante híbrida: há ainda grande interesse pictórico, mas formado pela justaposição de objetos tridimensionais. Costurando, parafusando, sobrepondo e colando objetos, o artista elabora uma colcha de retalhos sobre uma tela trabalhada com resina e fibra de vidro.
A ideia aqui é deslocar um recorte simbólico de nosso solo para as paredes da galeria, expondo objetos alegóricos que remetem ao processo formativo do país colonizado. Entre formas vegetais e peças douradas, o artista reafirma as cores dominadoras da nossa bandeira nacional: o verde e o amarelo. Pequenos tocos de madeira acenam para o extrativismo processo exploratório. Por outro lado, também se sobressaem peças de cerâmica, cabaças e conchas que se referem ao artesanato afro-ameríndio ancestral.
“Pindoretama”
A mesma técnica se estende também pela obra “Pindoretama” (2025). Acredita-se que “Pindorama”, termo mais popularmente conhecido como nome originário do que hoje se chama por “Brasil”, seja uma abreviação de “Pindoretama”, uma palavra derivada da junção entre “pindó” (palmeira) e “retama” ou “etama” (lugar, região), que pode ser traduzida como “terra das palmeiras”.
O topônimo também nomeia uma cidade no Ceará, que surgiu entre 1876 e 1877, durante o governo imperial de Dom Pedro II, mas que só passou a se chamar Pindoretama em 1943, quando o então distrito de Palmares teve sua denominação alterada por decreto estadual.
Sobre ambas as obras, Vidal Junior, curador que assina o texto da mostra, reflete: “Aparentemente amarradas pelas pontas, essas obras pendem como um tecido ou uma bandeira. A presença de aviamentos caros à produção têxtil, como fechos-éclair e botões magnéticos, embaralham os limites entre representação e alegoria. O corte de terra como um corte de tecido remonta à comoditização do solo e à persistência da questão fundiária por aqui.”
“Mundus Hodiernus”
Os trabalhos “Mundus Hodiernus” I e II surgiram a partir do contato do artista com um mapa “do mundo moderno” do século XVII. Coincidentemente, "Mundus Hodiernus" (latim para "Mundo Moderno") é o título de um famoso livro didático escrito por Brian Smith, que serve para a prática de conjugações latinas básicas usando vocabulário moderno.
Nestas obras, chamam atenção os grandes oceanos em tons de azul no mapa, construídos a partir de cordas náuticas, miçangas e pedaços de alguns azulejos que o artista garimpou em antiquários de Lisboa e que datam cerca de 1750.
Nessa mesma linha de pesquisa cartográfica, se dão os “Desmapas”. Kachani compreende os mapas ocidentais como uma linguagem criada para dominar e nomear o mundo a partir do olhar do conquistador. Para ele, os mapas antigos são todos iguais porque repetem a mesma narrativa: a de uma chegada de um povo navegante que se entende como “descobridor” de um território já habitado. Muda-se o território, mas a estrutura permanece. Por isso, para Kachani, não há necessidade de identificar a geografia retratada nos seus “Desmapas”.