Marca d'água: Luis Coquenão

2 Julho - 1 Agosto 2015

As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?

Sophia de Mello Breyner Andersen
Obra Poética I
Caminho

 

A história de vida de um artista aparece por trás de sua obra como marca d´água em papel, identificando as origens, atestando a autencidade. Se o passado se faz vivo, é com o intuito de construir um novo paradigma, proporcionar uma mudança constante na procura do progresso. Tudo muda a toda hora, o tempo é implacável e a identidade, tão perseguida, encontra-se nas diversas camadas de vivências. Luis Coquenão, artista nascido em Angola e radicado em Vila do Prado (Braga), Portugal, vem construindo sua identidade artística sob a luz de influências diversas. São dois mundos distintos, um em desintegração, outro em reformulação, formando uma rede onde as culturas e realidades se interligam. Abstração e figuração, espiritualidade e naturalismo, tradição e novidade são as questões que atualmente se fazem presentes em seu trabalho. Em termos processuais e conceituais, está mais perto dos movimentos coincidentes com a transição do século XIX para o século XX no Ocidente e com a arte oriental em geral, como o próprio artista se coloca: "Procuro uma síntese de todos esses pressupostos, mantendo, no entanto, as origens rurais de minhas vivências".

 

A exposição Marca d´água apresenta paisagens fluidas, por onde perpassam a cor delicada, efeitos sutis do pincel e texturas que nos levam a pensar os mistérios da natureza. Coquenão pinta nos quadrados como a materialização do plano ausente onde tudo se inscreve. Se, por um lado, existe o desconforto de pintar contidamente, por outro, o resultado é a liberação do gesto, num resultado coerente. Fortemente influenciado pela filosofia e pintura chinesas, Luis Coquenão cria suas obras na certeza de que a natureza existe tanto fora quanto dentro do observador. As mudanças e movimentos, sem fim nem limites, entendidos com emotividade, estão presentes em cada uma das telas expostas. Diante delas observamos a luz e as sombras, o frio e o calor do dia, o vento, a chuva e a calmaria.

 

Assim como o conceito de paisagem é impreciso, imprecisas são as paisagens que visualizamos em aguadas e translúcidas pinturas. Existem, primordialmente, em interação com a sociedade que as produziu, reproduz e transforma. Nesse sentido, Augustin Berque sugere que a paisagem é "matriz". Mas é também "marca" quando expressa uma civilização, podendo ser descrita e inventariada. A paisagem sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana, à cultura, à ideia de formas visíveis sobre a superfície da terra. É uma "maneira de ver", uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em "cena", em uma unidade visual. O termo surgiu para indicar uma nova conexão entre os seres humanos e seu ambiente.

 

Outro elemento fundamental na obra de Coquenão é a cor, que deste modo constitui uma linguagem e, como tal, requer aprendizado e reflexão para pensar o espaço. O diálogo sobre experiências plásticas pode ampliar o campo da atuação artística para além da criação da obra de arte. Johannes Ittens, em seu livro de 1970, Elements of Color, afirma que as cores devem ser utilizadas como uma carruagem, um meio de transporte para desenvolver a obra. Na arte moderna (e especialmente na arte contemporânea), as obras levam cada vez mais a jogar com a experiência temporal do próprio observador, que é impelido não apenas a contemplar, mas a participar.

 

Como campos de cor, Coquenão desenvolve uma relação ampliada entre o sujeito e a obra. A cor invade os sentidos, embriaga e leva a um estado de tensão. Então, o espectador, com seus interesses, individualidade, impulsos de ação, agirá sobre a obra que, como qualquer forma de arte, é sempre constituída como algo inacabado.

 

As formas abstratas e a cor foram tópicos de investigação das vanguardas históricas. Numa atividade sem regras que flerta com a ilusão de profundidade, ponderando os seus limites e o da representação, a abstração tira o espectador de sua condição passiva, confortável, contemplativa. Numa composição visual, Josef Albers, pioneiro da abstração, compara a cor com a música e explica: ouvi-la "depende da identificação dos intervalos entre os tons, bem como de sua colocação e espacejamento". Segundo Albers, a música tem uma sequência cronológica sucessiva e unidirecional. Já as cores "podem ser vistas em qualquer direção e a qualquer velocidade. E, tendo em vista a sua permanência, podemos voltar a elas diversas vezes e de muitas maneiras".

 

Luis Coquenão privilegia o tradicional, a tinta, a tela, o naturalismo. Sobrepõe camadas de tinta, deixando sua marca na transparência do processo. Escorrem as tintas, formam teias e franjas, molduras e contornos. Por trás ficam as marcas, ora mais claras e iluminadas, ora sombrias e mais escuras. Não há linhas retas, não há rigidez. Tudo é suave, sussurra e sugere mais do que impõe. Por sua obra transparece a coerência, o aprendizado que levou o artista a opções conscientes e maduras. Como marcas d´água...

 

Isabel Sanson Portella
Maio, 2015