Nobres sem aristocracia: Projeto vira-latas puros nº 51: Camila Soato

7 Outubro - 1 Novembro 2014

Havia um vira-lata na calçada, com o focinho enfiado para dentro do portão estreito de uma casa. Do lado de dentro, outro cão oferecia o traseiro para ser lambido, posicionando-se em marcha ré entre os vãos da grade do portão. Não entendo nada de cachorros, aprendi alguma coisa passando ali na rua: cachorros lambem-se no cu. Não os poodles, não os yorkshires, esses não sentem mais cheiro de animal, odor para eles é de sabonete, perderam a animalidade, são distraídos com bom-bom para cachorro quando ameaçam o pudor. Os vira-latas devem ser os únicos que ainda praticam esse ato de intimidade, que de alguma forma estava salvando o cachorro preso atrás das grades. Uma libertação animal. 

 

Camila Soato procura o animal no homem, em elogio ao vira-lata. A moça tira a calcinha de dentro da bunda, a criança lambe a pata do bicho, uma figura segura um tridente de diabo, outro tem cabeça de burro, um cachorro cobre o outro, um carro de polícia circula sem ter muito o que fazer a respeito, a pintura escorre, a artista limpa o dedo na própria tela.

 

Aqui nem Bataille nem Sade podem nos elevar a escrita. A palavra sobre essas telas beges e sujas vem baixa, vem das partes baixas do discurso, e é acompanhada dos sons que saem daquelas bocas abertas dos personagens das telas, que riem da crítica, riem do erudito, querem desafiar o texto a não falar cu, zombam de qualquer eufemismo, diabos de tridente me despudorando o ofício da crítica, diaba de pintura que ainda coloca grades verticais na composição, aquelas grades que prendiam o cachorro da rua por onde passei. 

 

Nenhuma figura fica solta na sujeira bege, porque essas cenas não estão no puro caos incivilizado. Elas têm desenho e composição, se sustentam na clareza das linhas verticais, nas grades, que vêm dar forma ao que seria imediatamente repulsivo. Organizando a cena, funcionando de contorno para cada cão, as linhas verticais permitem que o olhar escrutine cada lambida, cada calça abaixada. São listras praticamente atraentes, decorativas. Apolo a serviço de Dionísio.

 

Carecendo de conceitos já inventados ao longo da história da arte que pudessem se aplicar a essas pinturas, a própria artista sugeriu o termo “fuleiragem”: aquilo que há de vulgar e sem sofisticação, atuando como conexão entre lembranças de infância, vivências atuais e leituras teóricas. Fuleiragem atuando na artista, no espectador, no crítico. Unidos somos pelo elemento fuleiro, pela animalidade vira-lata, que é autenticidade, espontaneidade não-civilizada, em dose insuportável na pintura de Camila Soato. Pintura grossa. Espessa factura. Superfície secretante. Aqui não se limpa pincel e espátula, fica tudo no linho, coagulado numa mancha que, se fosse uma ferida, estaria bem em cima das boas maneiras, infeccionando-as. Até deixarmos de fingir poodles, até pararmos de ir ao petshop, até suspendermos o sabão. É ferida que só fecha com a gargalhada. 

 

E o cão lambe, e me olha com aquela cara de simples, de inofensivo, como se nem desconfiasse que complicou tudo. Complicou a História, a Civilização, zombou da pintura desde a Renascença, riu na cara da erudição, da noite de gala, da vernissagem, colocou um chapéu de batatas-fritas no chefe da igreja católica, fez copularem animais de espécies diferentes. Limpou na tela da pintura 500 anos de pincéis sujos.

 

Paula Braga, 2014