Zip'Up: Taxonomia: Vítor Mizael

17 Agosto - 14 Setembro 2013

SRD 

 

É por entre a familiaridade a estranheza, a atração e a repulsa, o apuro e a precariedade que a poética do artista paulista Vítor Mizael se movimenta. Participante de variados salões e editais, estreia no circuito de galerias em São Paulo com a individual Taxonomia, dentro do projeto Zip'Up, na Zipper Galeria.

 

Depois de Gabinete (2013), bem-sucedida exposição apresentada no Paço das Artes dentro da Temporada de Projetos da instituição e que serve como um tipo de síntese de sua obra, Mizael exibe agora um novo conjunto de pinturas, desenhos e objetos. Possui menos características de acervo e é menos permeável a uma suposta catalogação, dados bem evidentes em mostras e projetos anteriores. Movendo-se de modo intranquilo, ganindo, mexendo com rapidez suas asas ou em posições que incomodam o espectador, os animais domésticos e próximos representados pelo artista não param de inquietar quem os fita.

 

Certa inexpressividade permeia Taxonomia. Embora o traço caprichado a retratar pássaros diversos nas peças tridimensionais, algo escultóricas, seja evidente num dos agrupamentos da exposição, a paleta predominantemente neutra das telas, a emular tons de paredes expositivas de museus como o Louvre e o Prado, e o suporte de tais desenhos – compensados de madeira comuns no transporte de obras de arte mundo afora – terminam por enfatizar um caráter serial e pouco subjetivo. Ao mesmo tempo, os membros ora ausentes ora prolongados de algumas das figuras não deixam de desdobrar elementos do que podemos considerar um expressionismo brasileiro – lembremos dos peixes agigantados em escarlate de Goeldi, dos seres híbridos fantásticos de Grassmann e dos cavalos em queda de Jardim.

 

Contudo, os animais à margem de Mizael povoam tanto arrebaldes como degradadas zonas centrais das metrópoles brasucas, corporificando uma subcategoria, uma trupe com tênue fio de existência e cuja invisibilidade torna-se estratégia de sobrevivência e também expediente muito conveniente aos mais favorecidos. No entanto, quando tais vivências saltam aos olhos, a estranheza é patente. "[...] Uma cidade é 'um assentamento humano em que estranhos têm chance de se encontrar'"1, destaca o teórico do nosso mundo 'líquido', Zygmunt Bauman.

 

Se projetos destinados a instituições de autoria do artista paulista têm mais a ver com a crítica ao sistema de arte e a questões como o patrimônio e a salvaguarda, Taxonomia parece atestar uma abordagem mais móvel de Mizael. Isso faz com que uma pequena ave taxidermizada, de cabeça enterrada numa base de gesso, possa ladear no mesmo espaço um chassi circular a representar um cão em posição agressiva, de investida, cujo tom brilhante e particulares forma e volume nos remetam a um prêmio de caça, uma legitimação da história dos vencedores contra os vencidos. Ou seja, a estatutos do poder hegemônico.

 

Pois se a tantos é incômodo a manipulação simbólica de 'bichos fofos', numa cidade onde pet shops de envergaduras exageradas e concursos de beleza de animais de pedigree se multiplicam, é fundamental lembrar que vira-latas, por exemplo, encontram-se em um limbo jurídico. Animais silvestres são protegidos por legislação que órgãos como o Ibama têm de defender e fiscalizar. Já os SRD (sem raça definida) estão entregues à própria sorte. A menos que obstruam vias e logradouros, em caso de ferimentos, por exemplo, dependem de amparo alheio, muitas vezes não existente. Não à toa, a ArtNexus, quando Mizael expôs trabalhos em feira em Madri, em 2013, apontou a similaridade entre os imigrantes latinos, de cidadania de segunda classe, e os cachorros dispostos em instalação do artista paulista. Pois a obra de Mizael discute, sem meias-imagens, relações de sujeição e opressão. E ver isso de modo especular é pouco agradável.

 

Mario Gioia 

 

1. BAUMAN, Zygmunt.  Modernidade Líquida.  Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 111