O ser, como meta: Bruno Kurru

26 Maio 2012

A matéria da vida

 

A pintura de Bruno Kurru fica dentro de outra pintura. Cada tela é feita de várias telas. As coisas se abrem para interiores menores que paradoxalmente remetem novamente ao todo. A parte, ao invés de detalhar, expande. Ficamos presos então nesse labirinto espiralado dentro do qual olhar de perto me joga de volta para a amplidão. O todo está dentro da parte, numa inversão da racionalidade, jogando-nos no incompreensível. Em uma das telas, o universo surge num buraco no asfalto, que foi aberto com uma pincelada. O corpo que pincela o buraco aparece repetido em menor escala na beirada do abismo, estratégia de replicação recorrente nessas pinturas, seja na reflexão de um espelho, seja num eu que se desgarra do corpo, esvaziando-o. A mesma cena é por vezes pintada duas vezes, contendo sua versão miniatura dentro de si mesma. Nó no pensamento, como o nó do pensar sobre o existir. Ou, como escrito numa das pinturas, legendada como um filme, “how can one reach this state of self-understanding?”.

 

Por que vejo o universo escuro com pontos brilhantes quando fecho os olhos? Se há Deus, está dentro ou fora de mim? Existe um órgão corpóreo para a consciência? O que difere o corpo vivo do corpo morto? Onde fica a matéria vida?

 

No princípio do século 20, uma teoria pseudo-científica sugeriu que a alma pesava 21 gramas. Esse valor era a diferença média obtida em uma série de medições da massa de um corpo vivo e logo após a constatação da morte. A matéria vida então seria bem leve, mais ou menos o peso de 4 folhas de papel sulfite. Olho as pinturas de Bruno Kurru e vejo as colagens, as imitações de papel, a brancura rabiscada de três ou quatro retângulos pequenos sobrepostos para formar o todo, como se a superfície pintada, descontando o peso do canvas e do chassis, pesasse 21 gramas, como se o ato de pintar resultasse no peso da vida.

 

Kurru segue as investigações existenciais adicionando a seu repertório de imagens – ao lado dos papéis decorados, dos pedaços de corpos, dos espelhos e labirintos, e das referências a filosofias orientais – signos da nossa conexão com o mundo virtual. A estrutura de colagem das composições adquire então camadas transparentes, representadas pelo quadriculado cinza e branco usado pelo Photoshop, e janelas flutuantes com mensagens de erro. Assim, o artista inclui nas suas telas a mais recente onda metafísica da humanidade, nossa vida em rede, em conexão com o mundo virtual: “A rede pertence a um pensamento metafísico. Ela apreende ao mesmo tempo o corpo humano hic et nunc e liga esse corpo ao grande corpo do mundo: é uma noção bio-meta-física."(1)

 

No dia-a-dia, o lugar que a rede cibernética representa é algo similar a um cosmos misterioso, um céu vasto e inacessível, para onde dirigimos nossas mensagens, como preces, e de onde espera-se receber uma resposta. As figuras olham para o céu e para a tela do computador. Procuram o lugar da vida, da consciência, dento do corpo que contém também o universo. “Apply consciouness.exe”.

 

Quem faz as perguntas existenciais são as figuras pintadas por Kurru ou quem olha essas telas? Ora, se cada pintura tem outra pintura dentro dela, talvez quem olha esteja mesmo em uma outra pintura, maior. E assim sucessivamente.

 

Talvez o entendimento seja o instante final.

 

Paula Braga

 

(1) Anne Cauquelin, Concept pour un passage, in Quaderni, n. 3, “Images et imaginaires des réseaux”, p. 31-40, Winter 1987-88. CREDAP, Université de Paris-IX Dauphine.