Tempobjeto: Katia Maciel

1 Junho - 2 Julho 2011

O tempo é um contínuo. No entanto, usamos fatias para entendê-lo, como as horas, minutos e segundos. Ou noite e dia. Ou infância, juventude, maturidade. Para pensar o tempo, olhamos fotografias. Não temos a capacidade de pensar o fluxo contínuo do tempo, o derramar de um instante no outro, triste limitação de nossos cérebros, que funciona, como disse Henri Bergson, como se fosse um mecanismo cinematográfico: juntando imagens estáticas criamos a ilusão de que o pensamento pode reconstituir o desenrolar da vida, como num filme.

 

O próprio filme, todos sabemos mas fingimos não saber, é uma sequência de imagens estáticas exibidas rapidamente, algo em torno de 24 fotografias por segundo. A graça do filme é esse faz-de-conta, o deixar-se levar pela ilusão da sequência rápida de imagens estáticas e chamá-la de movimento. Nosso pensamento trabalha com uma ilusão semelhante à do filme. O transcorrer de um dia é muito mais do que os eventos isolados que invocamos para recontá-lo. Isso nós intuímos, mas não podemos realmente saber. O que sabemos é que pensamos o movente através de imagens imóveis.

 

A exposição de Katia Maciel na Zip’Up recorre a mecanismos cinematográficos para tratar do desaguar do tempo e de nosso esforço para tomar esse fluxo nas mãos. As sete obras da mostra Tempobjeto projetam em loop sequências que tentam apreender o tempo. A ampulheta do vídeo Timeless nunca termina de escorrer a poeira do tempo de um lado para o outro. O tempo passa, pois a areia escorre continuamente, mas o suprimento de tempo que ainda há para escorrer não diminui, e é do mesmo tamanho que a quantidade de tempo que já escorreu. Claro, pois o tempo é infinito, e o infinito dividido nos dois compartimentos comunicantes de vidro da ampulheta continua a ser infinito. Em Rio Ready-Made, a artista cita o Anémic Cinéma de Duchamp, dividindo a paisagem mais famosa do Rio de Janeiro com os aros de uma roda de bicicleta. No entanto, o movimento da roda apaga os aros, deixando a paisagem quase intacta, e duplamente enquadrada, pela câmera e pela roda. No tondo resultante, o Pão de Açúcar parece oscilar, como se balançasse com o vento, num filme dentro do filme, duplo registro do tempo.

 

O tempo é indivisível em partes menores, como mostra a maçã sendo cortada na obra Maçã no Escuro. Aqui, a fruta é submetida aos movimentos de uma faca mas nunca chega a se separar materialmente em fatias, assim como as horas tentam fatiar a polpa do tempo, que resiste, ignorando as divisões e escorrendo sem se desfazer em fragmentos. Em Noitedia, o tempo escoa de uma janela a outra, e do dia para a noite, e da noite para o dia, num movimento perpétuo que não está só do lado de fora da janela, mas inevitavelmente dentro de nós, dentro da casa, do corpo. Entorno mostra uma figura que gira enquanto tenta recolher a água do banho nas saliências do corpo, cuias feitas com as mãos, cotovelos e seios, como se quisesse segurar, pelo registro em filme, não só a água mas a pele em um certo instante da vida, o tempo da pele, ou a pele naquele instante.

 

Atrás das cenas corriqueiras há na exposição Tempobjetodiscussões filosóficas sobre o que fazer com o tempo infinito em uma existência finita - ou seja, como viver, como suportar a certeza de que o tempo continua depois que nós passamos. Meio Cheio, Meio Vazio lida com essa angústia e menciona novamente o escoamento, com uma jarra de água que nunca acaba de encher o copo. Cumpre decidir se o copo da vida está meio cheio ou meio vazio. Simultaneamente angustiante e libertador, o dado de Círculo Vicioso nunca vai parar no número desejado, justamente porque é redondo e não pára nunca. Desistir? Para alguns sim. Para o vivente-artista, inventar com o dado redondo um outro tipo de jogo.

 

Tempobjeto ressalta uma característica importante da obra de Katia Maciel: usar as exatas tecnologias da edição de vídeo para criar imagens lânguidas. Há uma melancolia aquosa em muitos desses vídeos, talvez por tratarem de uma impossibilidade, talvez porque falem de um porvir que não entendemos, desse tempo que corre autonomamente, sem precisar de um sujeito que ordene o movimento. A artista coloca, assim, o tempo da vida, que é contínuo, ágil, ondulante, fresco, independente, leve e indivisível, por cima do tempo da edição de um vídeo, que é milimetrado precisamente, em décimos de segundos. Nesse esforço em conferir o tempo da vida ao filme, Katia Maciel nos induz a alterar o funcionamento do cinematógrafo do nosso pensamento: não pensar mais na vida como feita de uma sucessão de estados, como uma sucessão de imagens, mas tentar entendê-la como um movimento autônomo, um devir contínuo, incapturável em sua inteireza.

 

Paula Braga