Zip'Up: Já vou: Alessandra Duarte

30 Abril - 21 Maio 2011

"Somos o tempo. Somos a famosa/ parábola de Heráclito, o Obscuro./ Somos a água, não o diamante duro,/ a que se perde, não a remansosa./ Somos o rio e também aquele grego/ que se olha no rio. Seu reflexo/ varia na água do espelho perplexo,/ no cristal, feito o fogo, sem sossego./ Somos o inútil rio prefixado,/ rumo a seu mar. A sombra o tem cercado./ Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa./ Na moeda a memória não perdura./ E no entanto algo ainda dura,/ e no entanto algo ainda se queixa." (1)

 

Águas, mares, piscinas de desenhos orgânicos construídos com apuro. Bosques, campos e jardins de paisagismo ordenado. Azul e verde. A obra de Alessandra Duarte passeia, chamativa e sedutora, por esse par cromático e por elementos que remetem à fluidez aquática e ao telúrico mais básico, de forte elo com o solo de onde o verde salta. Jorge Luis Borges (1899-1986) já assinalara no poema São os Rios (1985) a imagem algo à deriva, dissolvida em reflexos ou correndo para a horizontalidade do oceano, e que diz muito sobre a condição humana.

 

Em pinturas e desenhos, Duarte por vezes funde o azul e o verde, resultando em operações de cor que tornam-se um dos principais atrativos de telas como 24 de Junho e Já Vou, esta que dá título ao début da artista paulistana em individuais na sua cidade natal. Na primeira, Duarte utiliza o vermelho como cor que deixa o status de base e funciona para iluminar, nas partes superior e central da tela, a composição repleta de faixas horizontais. E em Já Vou, o verde e o azul-claro predominam, mas o marrom dos óculos de mergulho da figura central do quadro cria um interessante foco de atenção.

 

Sim, são muito importantes as formas humanas dentro das paisagens realizadas pela artista. Nessas duas telas, de tamanho generoso – 24 de Junho mede 2m x 1,30m -, a natureza própria do mar, como um ambiente harmônico que pode se transformar em instável a qualquer momento, ainda é mais alterado pela presença humana que parece querer dominar a situação (e, no entanto, tal comando parece ser fugidio).

 

As paisagens construídas ganham outro nível de leitura em pinturas como Caminhos e All That Baggage..., nos quais a presença mínima das pessoas sucumbe ao edificado, como testemunho do engenho humano, no primeiro trabalho, e parecem ínfimos frente ao avançar da natureza, no segundo trabalho. “Quem nasce num porto de mar, tem uma educação peculiar. Há uma visão das virtudes da natureza, dos seus fenômenos, mas também das engenhosidades humanas [...] Acostuma-se a ver a natureza não como uma simples paisagem, mas sim como um conjunto de fenômenos” (2), destaca o arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

 

Duarte não viveu em uma cidade portuária, mas sua graduação no Bard College, em Annandale-on-Hudson, num campus bastante típico dos EUA em sua implementação, com construções espalhadas por um grande espaço verde e longe da agitação de Nova York, fez com que a volta para a árida e ruidosa São Paulo não fosse tão rotineira. “Minha faculdade era bem afastada da cidade, praticamente no meio do nada. Com isso, passei basicamente quatro anos morando dentro de uma floresta habitada. Voltar a São Paulo foi um choque enorme, uma vivência dentro do concreto. Essa diferença de ambientes e a junção dos dois ficaram na minha cabeça”, diz ela.

 

Esse lidar dual entre natureza e artifício também é percebido fortemente nas novas séries de pinturas e desenhos da artista. Os prédios parecem ganhar mais força e as linhas, projeções e planos arquitetônicos se mesclam com mais complexidade e pulsam com importância clara em suas composições. Algo que se aproxima da temática do alemão David Schnell – visto em SP na injustiçada mostra Se Não Neste Tempo, no Masp, encerrada em janeiro último e que também trouxe os ótimos Tim Eitel e Eberhard Havekost, sem contar os Richter, Gerhard e Daniel, entre outros. O escocês Peter Doig, a norte-americana Amy Sillman e a sueca Sigrid Sandström também têm forte eco na produção da jovem artista.

 

Manifestando com força sua prática pictórica contemporânea, Duarte renova, com tal obra, postulados que grandes artistas como Josef Albers (1888-1976) – mestre no Black Mountain College, onde estudaram nomes como Eva Hesse (1936-1970) e Robert Rauschenberg (1925-2008) – desenvolveram tempos atrás. “Deveríamos aplicar a compreensão que Albers tem da cor à nossa compreensão dele, pois palavras e a tentativa de pontuar a diversidade não dão conta disso. A variabilidade é nossa única certeza. O artista costumava dizer que duas pessoas não produzem representações idênticas ao ouvir a palavra ‘vermelho’. Assim como os controles da linguagem, no todo, a precisão e o sistema de Albers serviram apenas para levar ao mistério e celebrá-lo. Ao que parece, aceitar e fruir essa ambiguidade é a grande mensagem desse poesia do laboratório” (3), escreve Nicholas Fox Weber. Inquietude, mistério e poesia, elementos que Alessandra Duarte sabe manejar bem.

 

Mario Gioia

 

(1) BORGES, Jorge Luis. Poesia. Companhia das Letras, São Paulo, 2009, p.378

(2) GIOIA, Mario. Cidades Velhas. Folha de S.Paulo, caderno Mais, 19.abr.2009, p.4
(3) DANILOWITZ, Brenda (org.). Josef Albers – Cor e Luz, Homenagem ao Quadrado. Instituto Tomie Ohtake/The Josef & Anni Albers Foundation, São Paulo, 2009