O átomo e o vazio: RAG

26 Outubro - 2 Dezembro 2010

Ponto de ebulição

 

PB29. O azul ultramar que evoca a cor-emblema de Yves Klein ganha um título que o joga para uma impessoalidade de tom asséptico. No entanto, algo que é apreendido a priori, mas subvertido na sequência, é um dos trunfos da obra de RAG, que ganha sua primeira individual na Zipper.

 

International Klein Blue, fórmula registrada pelo genial artista francês em 19 de maio de 1960 no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, recebendo o número de identificação 63471, é o dado mais midiático lembrado a respeito do grande artista nascido em Nice, em 1928, e que morreu cedo, em 1962. Hoje, quando algum artista utiliza um azul similar ao de Klein, é inevitável ser remetido a ele.

 

Cinquenta anos depois, RAG, artista paulistano que, por 20 anos trabalhou como diretor de arte e era conhecido como Ricardo Aguiar, utiliza o azul como uma das cores-chave da série de 32 telas que vem produzindo rotineiramente em seu ateliê em Pinheiros. PB29 faz parte de sofisticada série que a Zipper exibe agora.

 

Os títulos das pinturas conjugam o nome científico do pigmento e seu código universal utilizado na obra em questão. Assim, elementos da tabela periódica, tais como Si (silício) e Br (bromo), surgem na superfície das telas, bem como combinações mais complexas, como a Dihydroxyanthraquinone –ao menos no nível semântico. Tudo em inglês, como aparece grafado nos tubos de tinta que o artista compra. O design das letras também exala racionalismo, exatidão.

 

"A arte deixou de ser [...] uma espécie de inspiração que jorra de fonte desconhecida, avançando ao acaso e manifestando o lado exterior e pitoresco das coisas. A arte é fruto da lógica e da razão, complementadas pelo gênio embora obedecendo a imperativos da necessidade e informada por leis superiores", escreveu Klein em diário, no ano de 1958. O binômio imaginação/lógica apresentado pelo artista francês cabe e pode ser transposto em uma análise da obra de RAG.

 

Influenciado por nomes contemporâneos como o de Damien Hirst – que frisou que a ciência, para muitos, é a nova religião, em exposição na galeria londrina Paul Stolper, em 2005–, RAG cria duetos para a ciência dançar com a arte. Seleciona o sem-número de variações de cores, muitas delas produzidas artificialmente, pega o suporte histórico da arte, a pintura (via telas), e vai trabalhando sobre a superfície clássica. Porém, ao gravar o "ID" de cada peça, eis que começa algo bem menos rígido. O que se anunciava impessoalmente, a denominação da fórmula química e seu decorrente nome, são feitos a mão pelo próprio artista. RAG, assim, brinca e embaralha conceitos como simulacro e gestual. A escolha da moldura também segue a intuição do artista. RAG enquadra-as por métodos absolutamente subjetivos. E até encomendou tudo é empregado pelo artista.

 

Nesse lidar entre o planejado e o que sofre um descontrole, RAG vai criando sua poética. Se Goethe, em Teoria das Cores, já lembrava que a cor é algo maior do que as leis científicas defendem, RAG lança mão dessa percepção ampliada e vai ao encontro da busca e do questionamento da identidade por meio da arte. Questão colocada por diversos pintores da cena contemporânea, RAG se aproxima, por exemplo, do jogo entre pictórico e especular da obra recente de Luiz Zerbini e Hugo Houayek, em especial na tela em que emprega tom prateado. O duplo que vem do embate entre o ser e o objeto, o real e o refletido, o material e o representado, entre outras situações, interessa ao artista paulistano.

 

"Nós somos sistemas físicos. Arranjos complexos de carbono e de água. Nosso comportamento não é exceção a essas leis. Logo, se é Deus programando isto de antemão e sabendo de tudo ou se são leis físicas nos governando, não há muito espaço para a liberdade", reclama um dos personagens de Waking Life, filme-animação perturbador de Richard Linklater. "Será a liberdade apenas uma questão de probabilidade? Aleatoriedade em um sistema caótico? Eu prefiro ser uma engrenagem em uma máquina física e determinista que uma transgressão aleatória", continua a questionar o personagem.

 

Assim, no espaço "entre" o determinado e o instável, RAG vai produzindo calmamente sua obra. Nesses interstícios, o artista paulistano continua a repetir, via pintura, questionamentos comuns ao homem desde outras eras. "É fácil perceber que o valor de tal cor é sublinhado por tal forma e atenuado por tal outra. [...] O número de cores e de formas é infinito. Que dizer de suas combinações e de seus efeitos? Esse assunto é inesgotável", destaca Kandinsky em seu essencial Do Espiritual na Arte. RAG está começando sua carreira mergulhando em plenas incertezas. E já começa a produzir serigrafias e também planeja séries escultóricas nas quais vai investigar o mercado das vaidades mais em voga, o das cirurgias "estéticas". A obra de RAG tem tudo para ser incômoda e, por isso, necessária.

 

Mario Gioia