Por Um Dia Qualquer: Matias Mesquita

2 - 30 Outubro 2021

Tudo aquilo que é corriqueiro passa despercebido. O cotidiano só deixa de ser trivial quando dedicamos atenção a ele; e, só então, tem sua excepcionalidade aflorada. É a partir deste pensamento que o artista Matias Mesquita estrutura sua individual na Zipper Galeria, “Por Um Dia Qualquer”, aberta a partir de 02 de outubro. Com curadoria de Renato Rezende, a mostra reúne trabalhos que buscam extrair, de dentro da ordem do comum, o que é insólito.

Num magnífico e muito conhecido pequeno artigo de 1933, Walter Benjamin reflete sobre o empobrecimento (o esvaziamento) da experiência de estar no mundo do homem moderno. Numa passagem especialmente comovente deste texto (já um ensaio-poético tão em voga no contemporâneo), o filósofo judeu que seria mais uma vítima do nazismo, escreve, referindo-se aos soldados que voltaram da Primeira Guerra Mundial: “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano”. Os soldados voltaram não mais ricos, mas mais pobres em experiências comunicáveis, pois “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes”. Começava ali, de fato, e de forma traumática, o século XX e a modernidade como tal a conhecemos, lançando a humanidade num turbilhão crescentemente veloz de eventos políticos e econômicos e avanços técnicos/tecnológicos, esgarçando e atropelando cada vez mais nossa capacidade de construção coletiva de sentidos e sensação de pertencimento.

O frágil e minúsculo corpo humano; numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens. Mas também as nuvens estão em constante mutação, e não podem nos servir como referência. Mesmo assim, olhar para o azul do céu nos reconforta – ínfimo momento que nos reconduz à nossa humanidade; seres vivos respirando na superfície terrestre do planeta. É sobre essa alienação da pessoa contemporânea (e especialmente – mas não só – do proletariado mais humilde, para quem tudo sempre muda para continuar como está), no atual estágio do capitalismo em que nossas vidas, ainda que anônimas e massificadas, estão super-expostas e prosseguimos desencantados e sem objetivos, que fala a exposição POR UM DIA QUALQUER. Imerso em ambientes urbanos de escalas monumentais, sufocado por concreto e vidro (para Benjamin, o vidro é um material frio e sóbrio, sobre o qual nada se fixa – nenhuma história, nenhum vestígio humano; “as coisas de vidro não tem nenhuma aura”), respira o desvalorizado corpo humano, perdido em filas para subir num ônibus ou receber uma vacina, em empregos precarizados, em imagens e comunicações virtuais fantasmagóricas, e traduzido em mero algoritmo em um mundo cada vez mais complexo e labiríntico.

 

No entanto, combinando materiais brutos e uma técnica meticulosa e sofisticada, em POR UM DIA QUALQUER, Matias Mesquita, ao mesmo tempo em que expõe sem sentimentalismos uma realidade brutal, poeticamente resgata nossa humanidade. Sobre o concreto bruto, brota a sofisticada pintura manual de um pedaço de céu. Na série “Fila Única”, pessoas as mais variadas, com roupas normais e cotidianas, esperando pacientemente em fila indiana (improdutivamente perdendo tempo), são pintadas com minúcia e apuro (ou seja, ainda que meras figuras quase descarnadas, como decalques, são de alguma forma individualizadas e dignificadas) sobre pesadas superfícies industriais, típicas do mobiliário urbano, como portas de garagem. As obras da série “Laboro”, apresentadas de forma intercalada com as obras de pedaços de céus pintados sobre cimento, trazem operários uniformizados retratados de forma detalhada, quase fotográfica, trabalhosamente (num trabalho manual tão árduo quanto o dos próprios operários) pintados em camadas de resina, e emoldurados em pesadas caixas de concreto e ferro galvanizado, que trazem um aspecto escultórico e urbano proeminente da arquitetura modernista e do brutalismo paulista.

 

Graças à perfeita conjunção entre o material agressivo utilizado como suporte e a delicadeza técnica, quase amorosa, dos trabalhos do artista, Matias Mesquita logra recuperar a diversidade e a singularidade humana dos personagens/protagonistas anônimos na engrenagem da grande metrópole. Sobre elas, sobre nós, ainda que nem sempre nos lembremos de levantar o olhar, há sempre o céu azul, a luz do nosso país, iluminando uma vida cotidiana e corriqueira para as quais insistimos em buscar e encontrar sentido, resistindo à pressão totalizante que procura se impor de cima para baixo sobre nós. Qual outro seria o papel do artista no mundo contemporâneo senão permitir que essa resistência seja articulada? Que Matias Mesquita seja capaz de transmitir isso da forma mais poética, e por isso mesmo, mais potente possível, é apenas a confirmação da importância deste artista, e desta exposição.

 

Renato Rezende