O artista como colecionador de si mesmo: Marco Tulio Resende

O colecionismo e o desejo de guardar, nomear e preservar aquilo que nos escapa
Maio 15, 2025
Vista da exposição “Tantos museus dentro da gente”, de Marco Tulio Resende, na Zipper Galeria.
Vista da exposição “Tantos museus dentro da gente”, de Marco Tulio Resende, na Zipper Galeria.


Existe algo de profundamente humano no gesto de colecionar. Guardamos fragmentos de coisas que um dia fizeram sentido na tentativa de congelar aquilo que o tempo tenta apagar. Uma forma de lutar contra o esquecimento, de dar sentido ao mundo, ou simplesmente de segurar o que escapa. Mas afinal, para que serve uma coleção?


A exposição “Tantos museus dentro da gente”, de Marco Túlio Resende na Zipper Galeria, com curadoria de Tálisson Melo, apresenta uma retrospectiva de mais de cinco décadas de trajetória do artista mineiro, evidenciando sua relação de longa data com os objetos, suas materialidades e os rastros do tempo, que reencenam a memória em um processo de reconhecimento do eu no mundo.


Conteúdo do artigo:

 


Breve panorama sobre o colecionismo 


Johan Zoffany, Tribuna dos Uffizi , 1772-1777. Royal Collection, Londres, Reino Unido.

 

A prática de colecionar é tão antiga quanto a própria civilização. No mundo antigo, já havia registros de acúmulo sistemático de objetos, fosse por razões espirituais, científicas, políticas ou estéticas. Porém, a prática de organizar coleções como forma de representar o mundo e o saber com critérios de sistematização e exibição se consolidou na Europa renascentista, especialmente a partir do século XVI, com o surgimento dos Gabinetes de Curiosidades. Nesses espaços, eram reunidos objetos raros das recém-descobertas terras do além-mar. Animais empalhados, minerais, relíquias religiosas e científicas eram aglomerados nas paredes das casas da aristocracia. Era o início de uma ideia de acervo como espetáculo do mundo.

Mas os termos “colecionador” e “colecionismo” só se institucionalizam a partir dos séculos seguintes. Ao longo do século XVIII, com o Iluminismo e a sistematização do conhecimento, essas coleções particulares passaram a ser reorganizadas com critérios mais científicos, dando origem aos museus públicos (como o Louvre, em 1793) e às academias de arte e arqueologia. Nesse processo, o colecionador também passou a ser responsável pela construção das narrativas históricas, tendo o poder de escolher o que seria lembrado a cada vez que escolhia um objeto para uma coleção.

Marco Tulio Resende e o museu do abandono


Inventário do Abandono, de Marco Tulio Resende. Cortesia do artista

 

O filósofo e historiador polônes Krzysztof Pomian (1934) introduziu o conceito de semióforos para descrever peças que constituem as coleções museológicas. Estes seriam, segundo ele, objetos atravessados pela ausência, que não têm mais utilidade prática, mas carregam em si valores intangíveis (simbólicos, históricos, afetivos, entre outros). Desde os anos 1980, Marco Tulio Resende reúne (ou coleciona) objetos encontrados nos contextos mais aleatórios. Pigmentos de terra, bibelôs, pregos, facas e ex-votos formam o seu extenso “Museu do Abandono”, uma estante de cerca de dez metros, que posteriormente, aconselhado pelo seu companheiro, foi renomeada para “Inventário do Abandono” para, segundo o artista, “não usar a palavra ‘museu’ indiscriminadamente”.

Do ponto de vista institucional, um museu é muito mais do que o espaço físico que abriga objetos relevantes. Segundo o ICOM (Conselho Internacional de Museus), um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, voltada à preservação, pesquisa, comunicação e exposição de acervos com valor cultural, histórico, artístico ou científico. No Brasil, o Estatuto de Museus ainda exige o compromisso social e educativo dessas entidades. Ou seja, ele se define por seu vínculo com o público e pelo papel que desempenha na construção e no compartilhamento da memória coletiva. Nesse sentido, o “Inventário do Abandono” não possui acervo tombado, pesquisa sistemática, nem estrutura permanente ou uma missão pedagógica-social. Mas também não é apenas uma prática de um acumulador e sim de alguém que faz da repetição sua linguagem. 

Guardar como forma de existir


Vista da exposição “Tantos museus dentro da gente”, de Marco Tulio Resende, na Zipper Galeria.


Foi a partir do “Inventário do Abandono” de Resende que surgiu o título da exposição “Tantos museus dentro da gente” atualmente em cartaz na Zipper. Na mostra, o conceito de museu, que nasceu ligado às coleções exclusivamente privadas, e hoje é intrinsecamente público, agora, volta para as práticas íntimas e pessoais.

Às vezes, quando pensamos em “memória” pensamos somente em algo saudosista, aquilo que envolve as lembranças antigas e a nostalgia. Mas Marco Túlio nos lembra que ela é a própria fundação do “eu”. Cada um de nós é feito daquilo que guardou, do que viu, sentiu, enterrou ou esqueceu.

 

“Eu acho que a memória é o que permite a gente ser quem a gente é. Você é o que você é por causa da sua memória. Você pode ter um irmão, um gêmeo, idêntico a você, mas vocês não vão ser idênticos jamais. Por quê? Por causa da memória. Porque cada um vê e transforma aquilo que é visto de uma maneira. Não existem duas pessoas idênticas. Cada pessoa é uma pessoa, porque ela é a sua memória.” – Marco Tulio Resende

Colecionar, afinal, é uma maneira de lidar com o tempo: preservar o que escapa, tornar visível o que se teme perder. E cada um de nós tem seus próprios acervos de lembranças, dores, saberes, desejos e esquecimentos. “São tantos eus dentro da gente”, ele afirma, e são esses “eus” que moldam nosso inventário da experiência. 

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Serviço:
Tantos museus dentro da gente – Marco Túlio Resende
Período expositivo: até 7 de julho de 2025
Local: Zipper Galeria – R. Estados Unidos, 1494 – Jardim América, São Paulo
Horário: Segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 11h às 17h
Entrada gratuita