Celina Portella na Zipper: elementos para entender a exposição “Uma, nenhuma e cem mil”

Entenda como sua trajetória, que passa pelo design e dança, além de algumas mudanças formais, impactam os trabalhos mais recentes da exposição
Junho 20, 2025
Vista da exposição “Uma, nenhuma e cem mil”, de Celina Portella, na Zipper Galeria
Vista da exposição “Uma, nenhuma e cem mil”, de Celina Portella, na Zipper Galeria


Quando se percorre a exposição “Uma, nenhuma e cem mil”, de
Celina Portella, na Zipper Galeria, que apresenta um conjunto de obras inéditas de caráter bastante experimental, não é raro que surja no visitante a curiosidade de saber como elas foram feitas. Neste artigo, vamos justamente atravessar os bastidores desse processo, perpassando pelos elementos centrais da pesquisa da artista que ajudam a entender seus trabalhos mais recentes.

 

Conteúdo do artigo:

 

 

Trajetória da artista e sua relação com corpo, registro e subversão do suporte

Para compreender o percurso da pesquisa poética de Celina Portella não se pode desconsiderar sua formação em múltiplas linguagens. Antes de estudar artes visuais na França, ela iniciou a faculdade de design, experiência que não chegou a concluir, mas que foi suficiente para aguçar seu olhar para questões gráficas, de composição e organização visual.

 

Em paralelo, a dança esteve presente em sua vida desde a infância. Celina foi bailarina e também coreógrafa, o que favoreceu o desenvolvimento de uma sensibilidade atenta às relações entre corpo, movimento e espaço. Seus primeiros vídeos nasceram justamente do desejo de registrar suas próprias coreografias e, mais adiante nesse processo, ela começa a entender o vídeo não só como suporte documental, mas como suporte integrante da criação artística.


Vista do ateliê da artista com obras da exposição “Uma, nenhuma e cem mil” em processo de criação

 

Sua atual exposição na Zipper Galeria inclui, além das fotografias e instalação, um vídeo, chamado “Reflexos Sísmicos”, em que Celina se movimenta em negociação com a imagem de um papel amassado que se sobrepõe a ela. Na obra, o registro é objeto em si e a dança, que foi o ponto de partida da artista lá no início, retorna como mais uma camada poética.

 

Essa tríade entre corpo, imagem e subversão da linguagem se tornou a base de onde floresceu o trabalho que desenvolve até hoje. Desde os primeiros projetos, a investigação não se limita nem ao campo da performance nem ao campo da imagem, mas existe na intersecção entre ambos. A obra de Celina não é só gráfica, porque precisa do corpo. Mas também não é apenas o corpo em uma performance efêmera, ao vivo e sem seu registro. É sobre o corpo no espaço como elemento gráfico, registrado e mediado.

 

Novos contornos nas obras da exposição na Zipper Galeria

Uma das particularidades do conjunto de trabalhos inéditos de “Uma, nenhuma e cem mil” é que, pela primeira vez, Portella opta por trabalhar exclusivamente em preto e branco. A escolha vem de sua relação antiga com a estética analógica, com os ruídos, os granulados e as texturas não tão limpas quanto as imagens digitais de hoje. Mas, para além da estética nostálgica, o preto e branco também favorece a neutralização de informações, ajudando a deslocar o foco da individualidade para a forma, para os jogos visuais, para a composição.

 

Há também uma mudança perceptível no nível de síntese formal. Se séries anteriores, como “Corte”, apresentavam cenas ambientadas com cores, cortinas, móveis, que agregava um contexto ao corpo, agora os fundos são brancos, as roupas são mais neutras e o rosto da artista é coberto por papéis, manchas ou intervenções, que tornam sua presença menos identificável. Na série “Corte”, a moldura da obra é como uma janela para esse ambiente interno da representação, enquanto a representação do corte seria a ruptura, o ponto de fricção, ou então, justamente a conexão com o mundo concreto do espectador. 

Celina Portella, “Corte 1”, 2019


À medida que Celina foi reduzindo os elementos visuais de suas criações ao longo dos anos, as camadas de intervenção também foram intensificadas, tornando-se mais complexas e mais ambíguas. Nesta nova série, os registros fotográficos continuam essencialmente partindo do próprio corpo da artista, mas depois deles entram em cena várias outras ações: imprimir, reencenar, emoldurar, intervir – agora diretamente sobre o vidro da moldura –, avaliar e, por vezes, começar tudo de novo. O próprio papel é amassado, sobreposto à composição e depois re-fotografado, nos fazendo questionar o que é volume físico ou apenas ilusão impressa. As imagens nos confundem porque Celina Portella de fato reduz as distâncias entre figura e fundo. 

Vista do ateliê da artista com obras da exposição “Uma, nenhuma e cem mil” em processo de criação

 

Vale citar também a instalação presente na mostra, feita com enormes rolos de papel, que dialogam com a arquitetura da galeria e impactam no percurso do visitante. Aqui, mais uma vez, a artista fricciona as separações entre espaço “da representação” e “da realidade”. Se nas imagens o corpo opera dentro de um espaço fictício, construído pela composição, na instalação, o mesmo corpo, impresso em escala real, insere-se fisicamente no espaço expositivo e dialoga com ele.

 

O título da exposição e os vínculos entre autoimagem e identidade

O título da mostra atual é emprestado do romance de Luigi Pirandello, “Um, Nenhum e Cem Mil” (1926), que narra a crise de um homem ao perceber que sua identidade não é única nem concreta, mas uma miragem de múltiplos olhares alheios. Celina evoca a questão criando camadas sobre outras camadas, intervenções que obscurecem, duplicam e confundem até o ponto em que não sabemos mais se estamos diante de um papel (objeto) amassado ou a fotografia (representação) dele; quem é a pessoa que está ali representada; qual camada veio primeiro e qual sobrepôs. 

Celina Portella, Olho Mágico, 2025

 

Nas palavras de Ginevra Bria, que assina o texto curatorial da mostra, “como o protagonista do romance de Pirandello, no vazio de um palco existencial, Portella situa seu corpo frontalmente como fragmento ontológico de um ‘nenhum’. Um lugar onde ‘qualquer um’ poderia caber como substituto exato”. Celina se coloca nesse lugar do “não-eu”. Ao ocultar seu rosto, ela apaga os marcadores que individualizariam aquele corpo, porque, como Pirandello, ela entende que a identidade é algo projetado, moldado, atribuído pelos outros e pelas circunstâncias.

 

Esse conflito entre identidade e projeção também é um reflexo da relação que temos com as redes sociais e a internet como um todo. As imagens, multiplicadas em tela, constroem ou dissolvem qualquer noção de identidade estável, e a autoimagem não é mais necessariamente sinônimo de autorretrato.

 

Visite a Zipper Galeria

Agora que você já sabe alguns fatos e curiosidades sobre esta produção inédita de Celina Portella, faça uma visita à exposição, que estará em cartaz até o dia 19 de julho, para criar suas próprias relações com a obra. A Zipper tem entrada gratuita e funciona de segunda a sexta, das 10h às 19h e, aos sábados, das 10h às 17h, na R. Estados Unidos, 1494 - Jardim América, São Paulo – SP.