4 pontos para pensar sobre a exposição de Fernando Velázquez na Zipper

Entenda como “Biastiário: matriz das malícias” reflete sobre o atual panorama da IA na sociedade
Setembro 4, 2025
4 pontos para pensar sobre a exposição de Fernando Velázquez na Zipper

Desde 2019, Fernando Velázquez experimenta com inteligência artificial generativa e pesquisa a fundo sua rápida transformação. Dos primeiros algoritmos que mal conseguiam produzir imagens reconhecíveis até os atuais modelos que rivalizam com a câmera, o artista testemunhou as problemáticas decorrentes, como a apropriação massiva de imagens sem consentimento, a hegemonia do norte global nos datasets e a invisibilidade de matrizes culturais ancestrais que poderiam oferecer outras formas de conhecimento.

 

Em “Biastiário: matriz das malícias”, sua quinta individual na Zipper Galeria, o artista apresenta uma parte desta pesquisa por meio de uma instalação interativa que preenche todo o espaço expositivo. 

 

Conteúdo do artigo:

 

 

Título e os conceitos que sustentam a mostra

 

 

O título da mostra deriva da junção entre as palavras “bias” (em inglês, “viés”) e “bestiário”. A primeira refere-se às distorções, preconceitos e tendências parciais que permeiam o pensamento humano e os sistemas algorítmicos. No contexto da inteligência artificial, os datasets também seriam enviesados. O artista explica: “Quando esses algoritmos [de IA] surgem, [...] se detectou que esses treinamentos respondiam muito ao norte global, mais precisamente ao Vale do Silício. Então, havia ausência de pensamentos de outras matrizes [culturais], como as matrizes originárias, que hoje todo o conhecimento ancestral de todos os continentes está sendo elencado como um dos repositórios de conhecimento que podem ajudar a salvar o planeta num momento tão delicado.” 

 

Já o termo “bestiário” refere-se aos livros muito populares na Idade Média, principalmente na Europa cristã, que reuniam descrições de animais reais e imaginários, como leões, águias, elefantes, mas também unicórnios, sereias e grifos, com um objetivo para além do científico no sentido moderno, mas moral e didático. Cada animal vinha acompanhado de uma ilustração e de um texto que explicava suas características metaforicamente. Por exemplo, o leão que apaga suas pegadas com o rabo era símbolo de Cristo, que apagava os rastros do pecado. 

 

Sobre os bestiários, Velazquez diz: “Eu acho que seria oportuno atualizar isso dentro desse universo da inteligência artificial, porque é um universo muito duvidoso, estamos todos aprendendo a lidar com esse repertório. Isso seria uma metáfora, uma alegoria interessante para dizer: ‘bom, essas imagens pretendem também doutrinar ou informar as pessoas sobre esse universo da criação de imagens enquanto criação de conhecimento, criação de repertório sobre o mundo em que a gente vive’.”

 

O artista traz à tona essa tradição de compor catálogos de criaturas híbridas e simbólicas, mas no seu caso, essas criaturas são geradas pela fusão entre bios e tecnosfera, em que os vieses da IA produzem monstruosidades e revelam os vieses (bias) de nossos sistemas algorítmicos.

 

 

Poemas em blocos tipográficos

 

 

Antes de adentrar o espaço expositivo saturado por imagens, o visitante se depara com a materialidade da palavra em três blocos tipográficos de chumbo. A palavra é um elemento recorrente na obra de Velázquez desde 2012, mas para esta exposição, ele cria “quase-poemas”. Em um deles, escreve: “A obra de arte na era da estocástica algorítmica”, um trocadilho com o célebre ensaio de Walter Benjamin, substituindo “reprodutibilidade técnica” pelo funcionamento probabilístico e opaco dos algoritmos.

 

O chumbo, que por séculos deu corpo ao pensamento impresso, torna-se aqui um “dataset arcaico”, traçando um paralelo entre os antigos sistemas de reprodução e os atuais algoritmos.

 

 

Criação de imagens híbridas

No doutorado, as pesquisas do artista o levaram a questionar a suposta exclusividade humana sobre noções como consciência, criatividade e inteligência. A descoberta de que essas não pertencem apenas ao homem e que outras espécies manifestam cognição e consciência, dissolveu a centralidade antropocêntrica. A partir deste panorama, surge a ideia de criar seres híbridos, compostos por elementos dos reinos animal, vegetal, mineral, fungi e também de um possível “reino digital”, que o artista já vislumbrava em 2015 e hoje encontra fundamento teórico para sustentar.

 

Velazquez baseia suas imagens em referências como Hieronymus Bosch e Arcimboldo, artistas que também criaram universos fantásticos e híbridos, mas expande o repertório, incluindo o cinema de ficção científica de David Cronenberg, a estética do CGI, a linguagem dos videogames e até mesmo a memética digital.

 

 

A expografia e a ideia de capela algorítmica 

 

 

A instalação, com imagens cobrindo paredes e teto, fez do andar superior da galeria uma espécie de caverna ou capela, na intenção de evocar o espaço litúrgico em que se inscreviam os bestiários medievais e nos lembrar que, hoje, as imagens geradas por algoritmos também moldam crenças, sensibilidades e modos de existir.

 

No centro do espaço, a única fonte de luz é um vídeo em stop motion, projetado no chão, que exibe em ritmo vertiginoso mais de mil imagens. Um pedal interativo permite pausar a sequência e contemplar quadro a quadro. A posição do vídeo no chão voltado para cima impõe ao espectador uma postura minimamente inclinada, como uma reverência para acessar as imagens.

“A ideia da capela também ajuda a trazer de novo para uma coisa íntima, de uma relação um a um com o objeto da experiência, nesse caso, a arte e essas imagens específicas”, complementa Velazquez.