
Há quase dez anos, Julia Pereira se debruça sobre a pesquisa da materialidade da memória nas cicatrizes que marcam o corpo e a psique. Agora,a artista apresenta “Rastro e Pulsão”, exposição que integra o Zip’Up, um programa que desde 2011 seleciona, orienta e sedia projetos expositivos de novos artistas na sala superior da galeria.
Conheça a seguir um pouco sobre a trajetória que trouxe a artista até aqui.
Conteúdo do artigo:
Início da trajetória e primeiros contatos com a arte
Nascida em São Paulo e tendo vivido a adolescência entre Bélgica, Suíça e Holanda, Julia Pereira é uma artista cuja produção é marcada pelas transições, momentos de vida e, especialmente, pelas ausências e presenças de pessoas queridas.
Na época ela ainda não sabia, mas os oito anos de balé na infância lhe deram uma enorme consciência corporal e a ensinaram a perceber seus movimentos como linguagem - aprendizados esses que, mais tarde, transpareceram em suas telas gestuais. O primeiro contato com a pintura aconteceu ainda na escola, quando um professor de artes a incentivou a fazer autorretratos em grande escala, baseados em fotografias. A experiência foi marcante o suficiente para inspirá-la a seguir carreira criativa, mas por outro caminho, ingressando em uma faculdade de moda, que não chegou a concluir. Esse período de transição acabou gerando um intervalo de sete anos, entre 2008 e 2015, longe dos pincéis. Foi somente quando entrou na faculdade de artes que pintar voltou a fazer parte de sua vida.
A artista, então, reencontrou a pintura como um modo de estar junto de quem estava longe. Começou a retratar seus familiares, numa tentativa de dar corpo à saudade. Mas logo percebeu que o que lhe interessava, mais do que o retrato, era conseguir registrar a presença. Passou a fazer suas figuras sem feições, dando maior foco aos gestos, às lembranças e vibração das cores. Em paralelo, teve aulas no Instituto Tomie Ohtake com Paulo Pasta, grande mestre contemporâneo da cor e da forma, que certamente a influenciou no abandono da dependência da fotografia e do gênero do retrato em si.
Julia Pereira, Sem título 96, 2019
Percursos da pesquisa poética
A pesquisa de Julia Pereira passa por diversas fases em que seus trabalhos se transformam a partir de experiências pessoais de maior ou menor significado. Certa vez, bastou o simples recebimento de um arranjo de bexigas em seu aniversário para que o objeto impregnasse em seu imaginário, se desdobrando em pensamentos pictóricos de cabeças flutuantes, corpos suspensos e matérias elásticas de emoção que impactaram a maior parte de suas obras em 2019. Mas a leveza festiva das bexigas também carregava um presságio. Tempos depois, no mesmo dia em que completava mais um ano de vida, Julia perdeu o avô, e essa trágica coincidência entre celebração e luto passou a também atravessar sua obra - as efemeridades, a passagem do tempo, a fragilidade da vida, presença e ausência outra vez.
Julia Pereira, Petites morts, 2019
A artista, que até então via a saturação de manchas gráficas até os limites da tela como o único resultado possível de seu processo criativo - descrito por ela mesmo como um momento catártico, uma forma de “exorcizar sentimentos” - passou a perceber a emergência dos vazios em suas composições, que aos poucos trouxeram respiros tanto para a obra quanto para quem a criava.
Em outras fases de sua obra, quando esteve em períodos de maior contato com a natureza, passou a pesquisar correlações entre o corpo enquanto imagem e horizontes montanhosos, onde ombros podem ser colinas, e pescoço, vales. É interessante notar que, independente da fase, Julia sempre buscou “corporificar” ou humanizar objetos inanimados e “pictorizar” o corpo humano, investigando as plasticidades de suas formas e movimentos. A paleta de cores também é uma constante em sua obra, um fio condutor que atravessa diferentes fases de sua pesquisa poética e que, independente da forma ou do motivo retratado, sempre nos levam à carne, ao terno. Os tons de vinhos, rosas e toques de azuis, são recorrentes e conferem à sua pintura uma conotação visceral, combinada com os traços expressivos.
Em 2022, numa videoperformance, Julia mapeou a si mesma. Durante uma residência, fez do quarto um ateliê e da tela um lençol, descobrindo os desenhos de sua silhueta pelo tato, ao invés da visão, sem distinguir tela e corpo. A pintura, então, se desprendeu do chassi, do cavalete e da verticalidade. Desde então, a artista passou a dispensar essas tradições e criar seus trabalhos seguintes no chão - um corpo lidando com o outro.
“Rastro e Pulsão” na Zipper Galeria
Julia Pereira, Aparições, 2025
A individual de Julia Pereira na Zipper Galeria exibe um conjunto de obras recentes e inéditas, frutos de uma residência em Lisboa (Luz_Air, 2025). Lá, a artista foi tocada pelos azulejos portugueses, por sua lógica de repetição e espelhamento. Surgem, assim, seus trabalhos polípticos a partir de uma necessidade de estender a pintura para além de uma única tela. É o caso, por exemplo, de “Aparições” (2025), cuja composição foi pensada como um conjunto de fragmentos que só revelam sentido quando juntos.
Julia Pereira, Dancing Ghosts, 2025
Em “Dancing Ghosts” (2025), a artista parte da lembrança de dançar com um parceiro sem música na capital portuguesa. O que resta desse instante na memória não é a imagem, mas o ritmo compartilhado, os encontros dos toques, as linhas invisíveis traçadas pelos corpos em movimento no espaço.
A obra que empresta nome à exposição, “Rastro e pulsão” (2025), sugere aquilo que antecede e o que sucede o gesto. A força que lança e o vestígio que fica. O díptico, assim como as telas da série “Ecos”, é resultado da busca da artista em expressar as vibrações que ressoam após a ação, entendendo que memórias físicas e emocionais são indissociáveis.
Sobre as obras de larga escala, “Coexist” e “Os Protagonistas”, respectivamente com 191 x 152 cm e 150 x 270 cm, Pereira comenta que estas “vieram da vontade de pintar sem o limite do chassi ou da escala, e de considerar que o alcance do gesto, do corpo, poderia balizar a dimensão e a composição do trabalho.” Segundo ela, “Coexist” sugere um turbilhão de energias simultâneas que pulsam e a coabitam enquanto ela está pintando. Já para a segunda, as dramáticas cenas de “Dante e Virgílio no Inferno” (1850) de William-Adolphe Bouguereau e “O tempo derrotado pelo amor, beleza e esperança” (1627) de Simon Vouet foram algumas das inspirações. “Ambas vieram depois dos ‘Ecos’, pois senti que precisava expandir novamente. ‘Ecos’ são mais retraídos, residuais, venosos. E as de grande escala parecem ser mais arteriais novamente.”, reflete a artista considerando as artérias como aquelas que carregam energicamente o sangue cheio de oxigênio pelo corpo, enquanto as veias, em menor pressão, trazem de volta o sangue para o coração para adquirir oxigênio novamente.