Zip'Up: Ficção geográfica: Garapa

18 Fevereiro - 15 Março 2014

No conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luís Borges mostra como a realidade é construída, mutável e a verdade, facilmente reinventada. Na história, um único exemplar de uma enciclopédia britânica dá condições para que se ateste a existência de um país até então sem registros. Na sequência, uma enciclopédia inteira relata crenças, ideologias, o tipo de linguagem, de literatura, o sistema de contagem e outros aspectos que formam o planeta de Tlön.

 

Os relatos sobre esse território fictício, entretanto, ganham possibilidade de existência quando deixam de se submeter a questionamentos por estarem registrados em um objeto que contém, em si, o poder legitimador do conhecimento,  ganhando ainda mais credibilidade quando a história é disseminada pela imprensa. Os documentos, por fim, atrelaram realidade à ficção. 

 

Da mesma maneira que os livros carregam a chancela dos saberes, a fotografia empenha-se em sustentar, desde seu surgimento, o dogma de ser prova irrefutável da verdade. A arte, por sua vez, ajudou-a a relativizar esse status e evoca-a como um lugar de criação e reinvenção.

 

A tensão entre o documento e a ficção está posta no trabalho apresentado pela Garapa. O coletivo formado em 2008 pelos jornalistas e fotógrafos Leo Caobeli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes, tem como ponto de partida o factual: o acontecimento histórico, as relações entre culturas e países, o arquivo particular ou público. Embora imbuídos de contextos concretos, ultrapassam os seus sentidos originais e alcançam um território onde a dúvida impera sobre as certezas irrompidas pelas imagens e textos que compõem as obras. 

 

Traço ainda mais marcante e reconhecível ao se olhar os trabalhos desenvolvidos pelo coletivo no ano de 2013 e postos em diálogo aqui. A MargemDissonante,vagoCalma e o inédito Doble Chapa são hipóteses sobre o real que se diluem entre provas reticentes, histórias imaginadas e personagens fictícios. Evidências titubeantes, irreais, mas nem por isso falsas. Capazes de provocar o interlocutor a suspeitar saudavelmente das imagens e a confiar mais na capacidade singular da ficção expressar a realidade das coisas.

 

Joan Fontcuberta diz que o real se funde com a ficção e que a fotografia pode "devolver o ilusório e o prodigioso às tramas do simbólico, que costumam ser finalmente as verdadeiras caldeiras onde se cozinha a interpretação de nossa experiência, isto é, a produção de realidade[1]" . Ao mesmo tempo que a objetividade fotográfica perde sua força doutrinal, vive-se um mundo que, cada vez mais, se comunica por imagens. Parece ser extremamente necessário, portanto, perguntar-nos: então, que dose de confiança depositar nelas? 

 

Ao procurar problematizar o que se entende por construção de realidade em diferentes trabalhos, a Garapa desenha uma pequena geografia de sua criação. Elege trabalhos que sobrepõem camadas, dissecam uma temática e rompem fronteiras, de gênero e de linguagem, já que explorar a imagem em suas potencialidades é parte fundamental da pesquisa do coletivo. Momento oportuno, inclusive, para trazer a público o seu primeiro filme.

 

Produzido em parceria com o coletivo uruguaio Dokumental, Doble Chapa discorre sobre a vida na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, territórios separados por uma linha política e simbólica, mas que pouco faz sentido na vida cotidiana, na formação da identidade, nas relações entre as pessoas. Uma linha insistente que tenta apartar o que não se difere. 

Ao tomar emprestado o termo de Euclides da Cunha, Ficção Geográfica questiona o caráter tangível da realidade e dos documentos, dispondo-os como construções, nesse caso, artísticas. 

 

Ágata, 2014

 
[1] FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas: fotografia e verdade. Tradução: Maria Alzira Brum Lemos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010, p.125