Zip'Up: Transmission: Geraldo Marcolini

30 Junho - 28 Julho 2012

"Radio, live transmission/ Radio, live transmission". Logo após o pronunciado baixo de Peter Hook conduzir o início da canção, ajudado pelas vigorosas batidas da bateria de Stephen Morris, a voz soturna e tão característica de Ian Curtis dá corpo à letra de Transmission, do Joy Division, em um dos momentos altos do pós-punk britânico, no final dos anos 70. No videoclipe, o público algo monocórdico flerta com uma vibração mais engajada, mas se mimetiza aos neons, cortes de cabelo regulares e vestuários alinhados de toda a cena. Cabe lembrar que o paulistano Fabio Flaks perenizou na pintura When Routine Bites Hard um plano da mais famosa música da banda, Love Will Tear Us Apart.



O universo industrial em escombros apropriado por Flaks, simbólico de um angustiado fin-de-siècle, não se afasta do cenário algo melancólico do vídeo de Transmission. Ambos certamente dialogam com a produção plástica do fluminense Geraldo Marcolini. O artista apresenta em Transmission, sua primeira individual em São Paulo - dentro do projeto Zip'Up, na Zipper Galeria -, paisagens carregadas desse cinzento estado de espírito, de personagens ausentes, de errâncias desprovidas de sentido, de uma quietude a predominar.



As séries exibidas nesta mostra poderiam ser analisadas mais proximamente como uma investigação da paisagem, produzida sob um signo de pintura expandida. Contudo, Marcolini gosta de embaralhar procedimentos, linguagens e influências. Se na exposição CMYK (2011), na galeria Cosmocopa, no Rio de Janeiro, o plástico-bolha era uma espécie de matriz para suas experiências pictóricas, hoje, em Transmission, superfícies retangulares de borracha, dotadas de listras verticais, servem como módulos constituintes da feitura das obras. É um processo parecido com o da xilogravura - que nos remete, agora pela técnica, ao olhar pessimista de Oswaldo Goeldi (1895-1961). Aplicada na tela, por vezes em grande escala e em um paciente trabalho (há quadros que demoram até um mês para serem concluídos), a acrílica ganha contornos agora em forma de listras e estrias, em detrimento da granulação anterior decorrente da materialidade do plástico-bolha. As peças, assim, cruzam referências da pintura, da gravura e do desenho.



Mas de onde vem a ênfase em tais cantos imóveis, cenas anônimas, lugares intermediários, acontecimentos sem ruídos? Há uma mescla da captação do banal por meio de variadas fontes - fotografias próprias, imagens disponíveis na web, frames de filmes, registros corriqueiros de publicações e veículos antigos e atuais - e um olhar atento para o inexpressivo, um dos motores da arte contemporânea. Se, na arte recente brasileira, Regina Parra, Rafael Carneiro e Paulo Almeida, por exemplo, utilizam a pintura como comentário de uma sociedade hipermediada, na qual as câmeras de vigilância se destacam como dispositivo tão presente e, ao mesmo tempo, silencioso na construção de imagens, Marcolini opta pela criação de cacos de narrativas, fragmentadas e sem apuros visuais que só o levariam a um virtuosismo indesejável, no seu caso. "Procuro deixar o processo de escolha bem intuitivo, sem racionalizar os motivos", explica ele.



Assim, a gramática despojada e pouco ostensiva do fotográfico de um Wolfgang Tillmans, por exemplo, pode ecoar então na multifacetada poética do artista fluminense. E, em um mundo cada vez mais virtual e conectado na palma da mão, literalmente, Marcolini elege a baixa resolução como um dos catalisadores do seu processo autoral. "Neste universo, não só a imagem perdeu o corpo, como também o próprio real, inteiro, parece ter-se volatilizado, dissolvido, descorporificado numa total abstração sensorial"(1), adverte Philippe Dubois nos primórdios do touchscreen.



Obras como Fade Out e Print Screen (títulos que remetem a operações triviais de ferramentas de pós-produção e impressão) também nos fazem refletir sobre a particular situação urbana que vivemos. "Se a necessidade de ir mais rápido e de ganhar tempo, se a possibilidade de viver em tempo real e à velocidade da luz modificam nossa experiência corporal, será preciso por isso sacrificar o ritmo urbano de ontem? A inversão está de fato completa quando a passagem dá lugar a experiências em tempo real. [...] O urbanismo contemporâneo é duplo, ambíguo, uma vez que ele privatiza e fragmenta, sobretudo porque interconecta lugares privilegiados. [...] A proximidade pode ser ignorada quando os limites urbanos caem. O fora e o dentro são então radicalmente separados: estamos dentro ou fora, a experiência urbana, a que dobra indefinidamente o dentro e o fora, o fora e o dentro, está como que enferma, ela se imobiliza ante o risco do informe" (2), escreve Olivier Mongin em A Condição Urbana.



Em meio a tal condição ambígua e estilhaçada, usando transposições de tom low-fi - lembremos das páginas originárias de impressões matriciais, do super-8, dos vídeos amadores, do xerox PB de baixa definição -, Marcolini também corajosamente empreende a defesa da pintura, com elementos provocativos que parecem ironizar o patente impasse da linguagem. Se tanto o tecnológico possui brechas em sua transmissão de alta resolução, o acaso e o acidente não são apagados no fazer pictórico do artista. Convivem, estranham-se, coabitam, contaminam uns aos outros. "A pintura pode não estar morta. Sua vitalidade só será testada depois que estivermos curados da nossa mania e nossa melancolia e passarmos a acreditar novamente em nossa capacidade de atuar na história: aceitando novamente nosso projeto de vivenciar o fim, em vez de nos esquivarmos dele por meio de mecanismos de defesa cada vez mais elaborados (a mania e a melancolia têm tudo a ver com isso), e decidindo nossa tarefa histórica: a difícil tarefa do luto. [...] Digamos simplesmente que permanece o desejo da pintura, e que esse desejo não está inteiramente programado pelo mercado nem a ele subordinado: esse desejo é o único elemento que aponta para uma perspectiva futura da pintura, isto é, para um luto não patológico" (3), afirma Yve-Alain Bois. Entre o luto e a vitalidade, os impasses e as atitudes, as crises e as epifanias, a arte de Geraldo Marcolini não se omite e nos confere um status inquieto, conflitante, incongruente. "And we could dance", cantaria Ian Curtis.


Mario Gioia 

 

(1) DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 66
(2) MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p.132 e 133.
(3) BOIS, Yve-Alain. A Pintura como Modelo. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 294 e 295.