Caos-mundo: João Castilho

23 Março - 20 Abril 2013

Os trabalhos de João Castilho evidenciam relações entre a imagem fotográfica e a ampliação dos dispositivos narrativos. Castilho se interessa por observações sobre vínculos entre a paisagem e a visualidade pictórica, por exemplo, quando se dedica a intervir com pigmento colorido num deserto de sal. Ou ainda, ao observar fenômenos da natureza em ambientes interioranos, como nos redemoinhos do sertão mineiro. De outro modo, vemos a paisagem invadir estruturas de outdoor, nuvens se adequarem a conformação retangular como se preparadas para aquela moldura específica. Com isso, a presença de certa escritura da imagem o coloca em franca observação de alvos, momentos memoráveis, mirando a câmera, mas não se acomodando ao clic único. Os projetos de Castilho ultrapassam o uso da fotografia. Em recente produção videográfica, Morte Súbita o artista observou o momento pregnante de um disparo e fez um políptico com monitores que nublavam, eclipsavam as cenas, mas que coincidiam sincronicamente com o disparo do tiro. Um trabalho de extrema beleza e crueldade, não apenas pelo tiro disparado, mas por nos fazer refletir sobre a banalidade da imagem da morte, a espetacularização da mídia sobre tragédias diárias, tais como sequestros, assaltos, perseguições policiais.

 

Para a exposição, João Castilho parte do conceito homônimo de Glissant, onde o autor se dedica a compreender os acontecimentos que nos fazem ultrapassar a dicotomia oralidade e escrita. No Caos-mundo, a existência de uma Totalidade-terra prevê uma reformulação na relação entre normas e regras, abrindo- se a compreensão de fatos políticos e estéticos advindos das margens da sociedade. Estamos confrontados ao resultado do uso da linguagem que transcende a norma culta. E, ao contrário do erro gramatical, esse abuso da narrativa nos lança alertas sobre a existência de uma impossibilidade de comunicação nas vias tradicionais. A escrita, como já nos alertara Jack Good, é a domesticação o pensamento. O caos, então, seria uma resposta, um escape.

 

Na exposição, Castilho nos apresenta o vídeo Abismo. Partindo do fundo, da escuridão, vemos uma embarcação, repleta de gente, se deixar levar pelo movimento das águas. A imagem associativa mais óbvia, para o Brasil, seria a dos caminhos da colonização, as referências indígenas ou os navios negreiros. E o barco segue em direção à câmera, como se estivéssemos diante de um intervalo no filme, de um frame intermediário na narrativa mais completa. Porém, não há inicio ou fim. Eis que estamos diante de toda a história, de história nenhuma, de um hiato, onde a relação entre título e imagem nos faz espectadores de um acontecimento que acaba por não acontecer. O abismo, então, é o porvir, algo que possivelmente se encontraria logo depois daquele instante, onde os embarcados estão à deriva. Oralidade e escrita, assim, se apresentam como traumas da colonização, nos termos de Glissant.

 

Em outro vídeo, Erupção, várias cenas concomitantes, separadas em múltiplos monitores, nos fazem intuir a presença de incêndios. Mas o assunto principal, novamente, só se deixa observar de esguelha, como se a câmera buscasse de maneira investigativa o acontecimento, sem ter certeza para que ponto se direcionar. Todas as imagens separadas vão nos dando a compreensão de que se trata do incêndio de um ônibus, fato corriqueiro na violência das metrópoles, ao mesmo tempo, aproximado à barbárie, ao irracional, à falta de civilidade ou ao colapso da civilização. Vivemos num Caos-mundo. As relações interpessoais, a manutenção da coletividade, a possibilidade de criar um Uno estão corrompidas. Mas este sempre foi um desafio, como criar um Uno sem manter hierarquias, sem reproduzir relações de poder, sem desenhar margens, periferias. Glissant nos incita a perceber que a poesia é uma possibilidade de "participação ao canto comum". Ou seja, só a vertigem das narrativas, das escrituras, pode nos irmanar. "Não podemos mais escrever nossa paisagem ou descrever nossa própria língua de maneira monolítica", afirmará Glissant. No Caos-mundo deve haver a linguagem para transcender as línguas.

 

Castilho parte, obviamente, da linguagem da fotografia, usada no cotidiano para tornar visível os fatos históricos ou banais, deste mundo-caos, criando uma suposta documentação da realidade, buscando denúncia, memória. Isto sempre foi desafiador para a fotografia, pois exercita outro tipo de permanência. Quando se inscreve uma imagem, os objetivos perdem a literalidade, não se intenciona mais a duração daquela impregnação da imagem no suporte. Criam-se transfigurações. É errôneo dizer que, nos primórdios da fotografia, o único interesse era retratar os fatos. A fotografia foi experimental desde muito tempo, como vemos em Man Ray ou Yevonde. Ainda assim, diante da imagem, podemos compreender os fatos ocorridos. Tornamo-nos cúmplices da informação. Porém, com marcos históricos que elaboraram a quebra das grandes narrativas, os desafios se intensificaram. Hoje, as narrativas são quebradas pelo próprio caos, homens-bomba, sequestros, violência.  A isto o trabalho de Castilho se dedica, tornando-nos cúmplices do estarrecimento. 

 

Mas como suplantar a literalidade da informação? Por mais surrealista que possa parecer, o inacreditável está televisionado. De um lado, vemos que faz sol, de outro, vemos que chove, mas a arte não se apresenta. Esta era a crítica de Pablo Picasso à pintura impressionista, a qual ele chamava pejorativamente de "retiniana", justamente no momento de maior intercâmbio entre pintura e fotografia. Hoje, poderíamos acrescer, vemos o que não podemos acreditar, o impensável, o inadmissível. E tudo vira imagem. Mas, o axioma "picassiano" permanece: o fato é saber "quando faz arte".

 

Sobre isso, vários dispositivos conceituais foram apontados por teóricos, a sobriedade (aboutness) de Arthur Danto, a finalidade sem fim de Kant, o intempestivo de Agamben. Todos concordam que a arte está às margens da mensagem, frequenta um lugar fronteiriço, se desenvolve no vazio da imaterialidade, permanecendo, mesmo quando apagamos as luzes dos museus. Portanto, já sabemos quando faz sol. O tiro e a morte tornaram-se banalizados pela imagem na repetição dos noticiários. E, ainda assim, queremos saber quando faz arte.

 

A fotografia fora desafiada a exceder os limites da narrativa, informar sem finalidades, abrir-se a dispositivos, como num jogo. A imagem guardaria, então, um duplo sentido, dar a ver e transcender? Hoje, podemos arriscar a dizer não. A visualidade já não é mais objetivo da fotografia. A informação fotográfica é feita por uma clivagem autoral sempre, na escolha dos ângulos, na manipulação da narrativa. Poderíamos responder a Picasso dizendo, nem sempre faz sol como imaginamos, ainda que todos os signos visuais digam o contrário. Os deuses da chuva podem ser invocados, como fizera o Campo de raio de Walter de Maria. E "faz raio", com estímulos do projeto de intervenção na natureza deflagrado pelo artista, mas concordamos que nem sempre "faz arte".

 

Há, então, como analisa Guattari, que se compreender a conquista pela arte numa "Cidade subjetiva". Aquela, onde o ser humano desterritorializado torna-se o turista que viaja imóvel, em cabines de avião, e faz desta condição sua busca por uma subjetividade sempre ameaçada de paralisia. Neste mundo, caótico, subjetivo, as terras natais estão perdidas. A cidade-mundo do capitalismo se desterritorializou, transformou-se num Caos-mundo. A arte, assim, se agrega à imensa máquina-cidade na produção de subjetividades imaginadas, como nos trabalhos de João Castilho.

 

Marcelo Campos, 2013