A casa em festa: Flávia Junqueira

11 Setembro - 16 Outubro 2010

Confortavelmente entorpecido (1)

Hello,

Is there anybody in there?
Just nod if you can hear me
Is there anyone at home?
(…)
When I was a child
I caught a fleeting glimpse
Out of the corner of my eye
I turned to look but it was gone
I cannot put my finger on it now
The child is grown
The dream is gone
And I have become
Comfortably numb (2)

 

David Jon Gilmour e Roger Waters

 

Um conjunto de imagens que parece nos apontar, diretamente, para o acúmulo é o que nos aguarda e nos acolhe na proposição de Flávia Junqueira, em A Casa em Festa. De imediato, temos a possibilidade de percepção do confronto entre os objetos do cotidiano e os elementos mimetizados: a composição das imagens a partir do acúmulo, e da justaposição destes objetos – nas fotografias – bem como de imagens de objetos – nas colagens – potencializam a sensação de estranhamento, de algo que apesar de parecer, não é o que parece.

 

O processo de mimetização, deliberado, é utilizado, na construção das imagens, como forma de escamotear a relação habitual e cotidiana com o espaço, e com os objetos, propondo-se a, pela repetição, acúmulo ou mesmo pelo excesso nos cativar e envolver na atmosfera frequentemente aconchegante e convidativa, da casa e, em particular, da festa: momento de comemoração, de alegria e de felicidade. Este sentimento generalizado, em relação ao lugar e ao momento específico – o da festa – é reforçado pela presença dos objetos que estão presentes no dia-a-dia de cada um de nós, e que habitam nossas memórias infantis, quando nos referimos aos balões, aos brinquedos, aos objetos, à decoração, à indumentária e, principalmente, ao 'clima festivo' que elas evocam.

 

Desde a série de imagens intituladas Na Companhia dos Objetos há algo presente e que deve ser pensado como interesse nas discussões de Flávia Junqueira: os acúmulos e amontoamentos, manifestos pelos empilhamentos, pelas justaposições e sobreposições, de objetos lúdicos, e de referência explícita ao universo e ao imaginário infantil. Em suas distintas séries ela indaga e nos propõe refletir sobre os sentidos da memória e alguns elementos deste imaginário, assim, a melancolia da infância, a imaginação como fonte geradora da realidade do absurdo, o realismo fantasioso são, entre outros, pontos relevantes para a construção de suas imagens fotográficas.

 

As construções, e as relações por elas propostas, acentuam-se – agora ainda mas identificadas como excesso - em A Casa em Festa, ainda que, nas séries mencionadas, não se trata de, simplesmente, operar no sentido de exaltar ou referenciar a ideia de coleção, seja ela da perspectiva de um colecionador apaixonado, ou de um 'documentador' da produção material de um determinado momento, Ao contrário disto, trata-se de insinuar, ou melhor, de apontar a relação sentimental que estabelecemos, individualmente, com os objetos, e que estão – frequentemente - dominadas pelo sentimento da posse e que são exploradas, por Flávia, para além da existência física deles e de suas características morfológicas, ou de uso, criando uma atmosfera de deslocamento, e de permanente estranhamento.

 

Silenciosamente – e, ainda que aparentemente contraditório, este silêncio é outro denominador comum das imagens - os objetos são articulados e manipulados para criar cenários, em meio a um espaço conhecido, o da casa, e com isto permitir encenações, uma vez que não se trata de documentação dos espaços físicos e habituais de uma possível casa, ou lugar habitual de moradia, mas sim de possibilidades, nestas configurações apresentadas pelas imagens, para a reflexão proposta, acerca do desejo de explorar e buscar compreender nossas relações com os objetos e sua posse, algo que pode se tornar, até mesmo doentio.

 

Temos assim, o uso dos objetos de forma a acentuar uma carga que a eles pode ser atribuída, algo que os insere em uma categoria deslocada de funcionalidades específicas, ou pelo uso e, no caso de A Casa em Festa, ter que pensá-los, também, como o resto, como a sobra, como o detrito a indicar seu estado de existência anterior.

 

A casa é o espaço escolhido e recortado de um universo mais amplo, ela é o lugar do “residir”, não mais apenas definido pela relação com o espaço físico a que se atribui o sentido de moradia, de lar e de residência, para constituir-se em um estado, para abrir-se e “achar-se”, em uma condição e, em “consistir” em algo, portanto, deve-se pensar em um sentido mais amplo, para ela: o de possibilidade.

 

No início a casa era vista e trabalhada como o ambiente doméstico, mantidas suas características originais e a distinção entre as primeiras imagens, nas quais os objetos estavam na casa e são a memória desta, integram o ambiente e constituem-se no que havia na casa, o que representavam, mesmo que deslocados e 'acumulados' em um articulação distinta de sua ordem natural na organização da vida cotidiana e a articulação proposta nas imagens de A Casa em Festa, ou a casa como resultado do sonho, e do desejo, agora como que a buscar uma memória distinta, uma referência, na qual, a festa é forma de vestir, de decorar, é um artifício para a construção de uma nova casa, à partir de uma memória imaginada, de uma memória forjada para a realização desta relação com o espaço. Nesta nova 'memória' da casa é a imaginação quem domina e a festa é uma forma de alterar, de transformar; mas a festa acaba e os sinais são mais do que simples indícios: o confete pisado espalhado e amontoado pelo chão, o boneco que já foi algo além de uma simples roupa, as bexigas murchas, a vela apagada, tudo dura pouco e se acaba, tudo na festa acaba rápido.

 

Todos os elementos constitutivos da imagem acentuam a relação de perda - dos objetos, das relações, dos sentimentos, das situações – e, mais do que o sentimento de nostalgia que poderia advir desta perda, parecem apontar para um estado de melancolia, constante, insuperável e do qual podemos tentar escapar, mas nem sempre conseguiremos fugir.

 

As imagens – fotografias e colagens – propõem que reflitamos sobre esta condição, e o processo necessário à sua produção se mantém presente – parte da ironia inerente ao trabalho – por intermédio da instalação que integra a exposição, para a qual que será necessário realizar uma manutenção constante, garantindo-lhe uma sobrevida, um prolongamento, na verdade, de seu 'estado de vida'. Neste sentido seus elementos irão, pouco a pouco, se desfazendo, como uma maquiagem depois do espetáculo, que revela a melancolia do ator que viveu, momentaneamente, o personagem, mas que, como todo 'espetáculo', incluindo o da vida, deve continuar e, para isto, uma condição deve ser criada – e a festa representa, mas não é – essa possibilidade.

 

Marcos Moraes

 

(1) A partir do título da canção Comfortably Numb, do álbum The Wall, Pink Floyd, de 1979.

(2) Livre tradução:

Olá?

Tem alguém aí?
Apenas acene se puder me ouvir
Tem alguém em casa?
(...)
Quando eu era criança
Tive uma visão fugaz
Pelo canto do olho
Eu virei para olhar mas tinha sumido
Eu não pude tocar na ferida
A criança cresceu
O sonho se foi
E eu me tornei
Confortavelmente entorpecido