Zip'Up: Há sempre um corpo que sobra: Maya Weishof

10 Abril - 12 Maio 2018

Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía. (Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens). 

 

Onde termina o corpo e começa todo o resto? O espaço e o limite entre aquilo que sobra, ameaça a ordem. Membros e extremidades prolongando-se mais do que o necessário; pedaços que nascem no lugar errado e logo se espalham. Ou apenas morrem de um dia para outro, como se nunca tivessem ali brotado. O abjeto, o monstruoso. 

 

O começo é sempre queda, vazio. O corpo só é unidade quando algo o separa do mundo. Sem esse limite não há sujeito, não há forma. Sem identidade resta só o abismo. 

 

No vídeo em que aparece deslocando-se sobre as páginas arrancadas de um atlas, enquanto tenta apagar as fronteiras dos mapas com um pó de talco, Maya Weishof introduz parte do processo desenvolvido na série de pinturas desta exposição. Mapas, afinal, guardam uma semelhança com os corpos disformes apresentados aqui. Territórios também só ganham nome e forma quando separados por limites. Ao caminhar sobre esses pedaços de papéis que ali entendemos como mundo, utilizando o próprio corpo como medida, a artista dimensiona a fragilidade desses conceitos. Eliminar as fronteiras desses territórios é devolver a ideia à pura abstração. 

 

A ação quase pictórica presente em Novo Atlas Escolar Português (2017), vídeo feito logo após voltar de uma residência artística em Portugal, funciona como uma boa transição para o conjunto recente de pinturas. Como o redesenho cartográfico ali realizado, também há nas telas um processo constante de eliminação – seja dos contornos das figuras, quase sempre indefinidos; ou no desmembramento de estruturas que ganham vida e passam a existir sozinhas, embora nada indique que irão se sustentar por muito tempo. Deslocados e dilatados, esses fragmentos – mãos, olhos, dentes – parecem vagar em busca de uma base que não se sabe se existe.

 

Entre o deslocar-se dos corpos em trânsito e a representação de corpos transgressores, as imagens criadas pela artista se aproximam das discussões sobre o abjeto trazidas por Júlia Kristeva em Pouvoirs de l’horreur (1980). Partindo do termo psicanalítico que define o abjeto como algo a ser eliminado para a constituição do eu, Kristeva utilizou o conceito para explicar processos discriminatórios como o antissemitismo e a xenofobia, ameaças à suposta unidade de um grupo e sujeitos hegemônicos. O aumento do fluxo global e a dissolução de limites identitários nas últimas décadas tornou essa discussão mais latente. 

 

O corpo feminino, associado desde sempre a processos imprevisíveis que fogem à ideia de limite e ao controle da racionalidade, predomina nas figuras retratadas por Maya. Em uma delas, o rosto de uma mulher sem tronco se desenvolve sobre uma profusão de braços e mãos desproporcionais, enquanto no tríptico os membros assumem toda a forma dos corpos, já sem nenhuma face. 

 

“Subitamente, metade das coisas pareciam compostas”, escreve o narrador de O filho de mil homens, romance de Valter Hugo Mãe. O personagem que antes era um vazio sem fim agora se completava com as partes que lhe faltavam perdidas pelo mundo. 

 

A frase é também uma boa definição para os corpos desmembrados nas pinturas de Maya Weishof. De metade em metade espera-se que algum dia elas se encontrem, ou cheguem a algum lugar. 

 

Nathalia Lavigne