Flávia Junqueira responde sete perguntas sobre sua pesquisa artística

Mergulhe no processo criativo por trás da artista representada pela Zipper
February 21, 2024
Château de Fontainebleau, 1137 (fachada), France
Château de Fontainebleau, 1137 (fachada), France


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A artista Flávia Junqueira, representada pela Zipper, é amplamente conhecida por fotografar patrimônios históricos preenchidos com balões de gás hélio e, assim, conceber cenas que combinam o real com o fictício, o presente com o passado, o adulto com a criança.

 

Château de Fontainebleau #2, 1137

 

Como a sua experiência anterior com a cenografia impactou (ou impacta) sua produção artística visual? 

A experiência de trabalhar com Cenografia Teatral com o arquiteto e cenógrafo J. C. Serroni impactou de forma determinante, e ainda impacta, minha pesquisa e produção. Trabalhar dentro de teatros e conviver com figurinistas, cenógrafos, iluminadores e toda equipe de produção fez com que eu desenvolvesse aprendizados que utilizo todos os dias quando realizo as fotografias encenadas. J. C. Serroni foi uma grande referência naquela época para eu entender como trabalhar e ter um ateliê próprio como artista, além de me ajudar a desenvolver minha própria poética. Ele é uma inspiração para mim até hoje. 

 

O que é fotografia encenada?

A fotografia encenada ou fotografia construída, constitui o que podemos chamar de um tipo ou gênero fotográfico, que surge com essa nomenclatura a partir dos anos 1980. Na maioria da vezes, ela é vista ou descrita como uma imagem que foi “montada” , porque, para sua elaboração, todos os elementos reproduzidos, até mesmo o ângulo da câmera, são reunidos, produzidos e planejados previamente, exclusivamente para o quadro fotográfico com o intuito de expressar uma ideia (conceito) elaborada muito antes do clique. Vale ressaltar que a fotografia encenada, como forma de expressão, existe desde o surgimento da própria fotografia, mas na época ainda não era considerada um gênero artístico.

 

Salão dos Embaixadores/ Palácio de Linares #1,1873, 2023

 

Como são feitas as escolhas dos locais que receberão suas intervenções?

Essa é uma catalogação de Teatros Históricos, que comecei há 2 anos e ainda está em processo. Eu busco encontrar os teatros mais relevantes do nosso país, cujas arquitetura e conservação apresentem verdadeiras fábulas visuais e conceituais sobre um período determinado da história do país. 

Para além dos teatros, a maioria dos espaços escolhidos (edifícios, salões, igrejas, monumentos) são marcados por serem símbolos culturais e históricos de grande relevância.

 

Eu já produzi fotografias em espaços muito diferentes. Algumas arquiteturas foram escolhidas em função de sua rica ornamentação, como é o caso dos teatros. Outros espaços, como o Minhocão no Centro de São Paulo ou as quadras de Escolas de Samba no Rio de Janeiro, foram fotografados pelo uso recreativo. Em ambos os casos, parece haver um tensionamento da razão instrumental moderna. Quando levo os balões para o Minhocão, por exemplo, estou me juntando, do meu modo, aos frequentadores do parque que se apropriam e subvertem uma estrutura urbana, criada durante a ditadura militar como parte de um projeto de desenvolvimento urbano, que concebia o espaço público como local de passagem de automóveis, e não de convívio e experiência lúdica.

 

Qual papel a técnica de fotografia encenada desempenha como solução poética e conceitual na sua produção?

Como um dos conceitos da minha pesquisa é falar sobre teatralidade e criar realidades diferentes do senso comum, assim como, mergulhar nas memórias de nossa infância e reconstruir imagens com características de fabulação, magia e encenação, obviamente a fotografia encenada passou a se tornar um instrumento essencial para eu criar as imagens, pois ela me permite criar deslocamentos, colagens e cenas que não existem no mundo real.

 

Real Gabinete Português de Leitura #5, 1837, 2021

 

Dois elementos são muito característicos em seu corpo de trabalho: os patrimônios históricos enquanto pano de fundo e os balões enquanto protagonistas/personagens. O primeiro é envolto em uma estética clássica, enquanto o segundo é associado especialmente às celebrações de aniversário infantil. Poderia falar sobre o contraste poético de temporalidades que existe na sua produção? 

A relação que busco estabelecer em meus trabalhos vem principalmente em duas mãos. Num primeiro momento desejo me apropriar desses espaços em que a memória do passado e a magia da teatralidade estão fortemente presentes e reafirmá-los como potência, pois muitos desses locais estão abandonados ou a grande maioria das pessoas nem sabe que eles existem. Por outro lado, ao inserir objetos como balões ou elementos lúdicos da infância, reitero uma desconstrução e crio um deslocamento do que se espera comumente encontrar ali, abrindo a criação de novas camadas de realidades, mais próximas da fabulação, sonho e fantasia. É uma maneira de olhar para nosso passado e ao mesmo tempo reinventá-lo. 

 

Pode nos contar algum dos maiores desafios que você já enfrentou na hora de capturar uma de suas cenas?

As tarefas na hora de capturar uma cena são muitas e sempre trabalhosas. O processo de feitura de uma obra de fotografia encenada é muito parecido com o de direção de arte, eu passo basicamente por três etapas: a pré-produção, produção e pós-produção. Acredito que as produções no exterior são as mais desafiadoras, porque além de nossa equipe ser composta por quatro pessoas, as relações culturais e com os fornecedores são completamente novas a cada trabalho. As fotos que realizo em locações externas também são difíceis porque dependem das questões naturais. Nesse sentido, creio que Lençóis Maranhenses e Floresta Amazônica foram muito desafiadoras. 

Eu sinto que tenho mais facilidade para a parte “mental”, meu processo é rápido e sempre carrego cadernos de anotação comigo. Já o preparo para a instalação é um trabalho duro operacionalmente falando, que só acontece no coletivo, com uma equipe que trabalha junto. Ambas as partes carregam seu desafio, uma no sentido de criação poética e outra no sentido de execução técnica de qualidade; uma exige sensibilidade mental e a outra, força de concretização. Realmente não sei qual é mais complexa. 

Série Glass, Lion #1

 

Você acredita que seus trabalhos têm a intenção de resgatar algo da infância que comumente é perdido durante a vida adulta?

O que me levou a entrar nesse universo não foi o assunto da infância em si, mas o que ele me propõe. Sempre me senti inclinada a pensar em realidades alheias ao nosso cotidiano comum, assim como também, sempre tive um interesse forte pelos elementos mágicos, teatrais e cenográficos. Quando era adolescente e jovem, continuava a gostar muito dos objetos e atividades das crianças, porque eram sempre divertidos, leves e sem preconceitos. Quando entrei na faculdade de artes plásticas, estudei cenografia teatral com J.C Serroni e entrei no mundo de “faz de contas” dos cenários teatrais. Todo esse universo sempre me conquistou energeticamente e visualmente. 

Buscar saídas para o nosso cotidiano comum, através dos elementos lúdicos e atípicos, sempre foi um caminho para falar de nossas memórias e, principalmente, criar estratégias para lidar com a morte, com nossos traumas, com a consciência da finitude das experiências e das relações, etc. 

 

A infância, essa fase em que parece estarmos em suspensão mágica, onde posso idealmente sonhar ser quem eu quiser, sempre me acolheu para recriar esses mundos avessos ao senso comum. Estudá-la e me apropriá-la é a maneira que tenho buscado para me distanciar de algumas realidades e criar outras. 

Estes elementos que remetem à infância estão presentes desde os meus primeiros trabalhos e compõem, sem dúvida, um eixo estruturante da minha pesquisa. Há um ponto de partida que é biográfico, que tem a ver com o fascínio que a festa infantil, os parques de diversões, etc. sempre exerceram sobre mim. Mas há também um aprofundamento da pesquisa ao longo destes mais de dez anos de produção que culmina em um conceito de infância que não se reduz a uma etapa pela qual passamos em direção à vida adulta. Hoje, o que me interessa na infância é um modo de se relacionar com o tempo, com o corpo e com a matéria, que pode ser aprendido e cultivado por qualquer um que não subscreva o projeto moderno de civilização que, baseado em noções como a razão e o progresso, afastou-se demasiadamente do horizonte da alegria.